“Nascer” com uma doença crônica é demorar a se conhecer. Para a cearense Ana Geórgia Simão, 41, saber como era o formato do próprio rosto, sem efeitos de medicação, levou cerca de 35 anos: quando cessou o uso contínuo de corticoides para tratar o Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES).
Diante de uma doença inflamatória autoimune e sem cura, com sintomas múltiplos que a acompanharam desde a infância, Ana sequer consegue datar o diagnóstico. Na dúvida, aposta na data do próprio nascimento: 10 de maio, que também marca o Dia Mundial do Lúpus.
Eu sempre tive lúpus, não foi algo que apareceu. Eu não era uma criança igual às outras: tive infecções urinárias recorrentes desde bebê, tive que tomar diversos antibióticos, tirar todos os dentes de leite no dentista. Não tenho como datar.
ANA GEÓRGIA SIMÃOAssistente comercial
Na última quinta-feira (2), o Diário do Nordeste esteve em São Paulo para conversar com Ana e participar do lançamento da minissérie documental “Sentindo na Pele”, que aborda as histórias de 4 mulheres que “têm em comum o lúpus e a coragem”.
O primeiro dos 4 episódios é protagonizado pela cearense, e está disponível no site amarcadacoragem.com.br.
A produção é da AstraZeneca, em parceria com o Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, e tem o objetivo de quebrar o silêncio e a desinformação sobre a doença – fatores que dificultam desde o diagnóstico até o cotidiano de quem o enfrenta.
“QUASE PAREI DE ANDAR”
Para Ana, foram 18 anos e muitos médicos distintos até ouvir o próprio nome e a palavra “lúpus” na mesma sentença. “Eu não crescia, tinha idade óssea atrasada, sangrava muito pelo nariz. Era ‘café com leite’ nas brincadeiras, não fazia educação física no colégio… Tive vários problemas de desenvolvimento”, relembra.
A “solução” veio por hormonioterapia, administrada durante 2 anos, tempo no qual a “Aninha” adolescente cresceu, se desenvolveu – e viu o lúpus ser desencadeado.
A doença autoimune, quando os anticorpos atacam as células do próprio organismo, atinge majoritariamente mulheres, já que tem questões hormonais como principais “gatilhos”.
Me levaram ao clínico geral e ele me diagnosticou com febre reumática. Tomei 64 injeções de benzetacil. Quase parei de andar, já tinha perdido os cabelos, tava muito magra, não tinha memória. Aí, aos 18 anos, fui ao reumatologista.
Ao olhar para a cearense, o reumatologista, especialista responsável por tratar o lúpus, identificou a doença. Além do cabelo quebradiço e de todas as dores, Ana tinha, à época, um sintoma típico entre os pacientes: o rash malar, mancha vermelha que tinge as bochechas em formato de asa de borboleta.
“Isso era no final dos anos 1990. Não tinha medicação biológica, específica para o lúpus. Pessoas se afastaram de mim porque achavam que eu ia morrer mesmo – eu achei que ia morrer mesmo. Saí do meu emprego e fui morar numa barraca de praia em Jericoacoara.”
A MENINA E O LOBO
O pânico em torno do diagnóstico é causado por um fator perigoso: a falta de informação. “Quando eu descobri, fui olhar na internet e era só imprimir o atestado de óbito, porque era como se não tivesse jeito”, descreve Ana.
Outra dificuldade, esta mais sutil, vai pesando sobre os ombros de quem tem lúpus ou qualquer outra doença crônica conforme o tempo passa: o esquecimento.
Quando você está gripada, sua mãe fica preocupada. Quando você fica gripado por 20 anos, as pessoas pensam ‘ah, de novo? tem jeito mais não’. No começo, minha família se mobilizava, depois foi espaçando.
O pedido de socorro, então, veio por meio da escrita. De poesia. Num blog, “A Menina e o Lobo”, Ana descrevia sentimentos e dificuldades enfrentadas na lida com o lúpus. O conteúdo viralizou. Hoje, após migrar para o Instagram, a cearense tem mais de 25 mil seguidores.
“Eu sentia que as pessoas precisavam daqueles textos pros familiares delas também não esquecessem que elas têm uma doença crônica. Já faz 6 anos que não tomo mais nem medicação, mas eu tô lá todo dia, posto pra eles todo dia”, garante.
“PERDI 3 BEBÊS”
Um dos principais medicamentos para combater o lúpus é o corticoide, cujos efeitos colaterais pesam no corpo e na mente. Hoje, ao levantar 200kg nos exercícios da academia, Ana difere infinitamente da jovem que, em alguns dias, “sequer conseguia segurar uma caneta”.
“As dores eram como se eu tivesse levado paulada no corpo todo. E aí você tenta se levantar e o corpo todo não atende, tudo dói: segurar um copo d’água, pentear o cabelo. Na época, eu passei pra Engenharia de Pesca na UFC, mas tive que abandonar.”
Quando fiz pulsoterapia, que era tomar corticoide na veia, eu trabalhava a semana toda, no sábado me internava, e no domingo me recuperava. Passei 4 anos assim, sem fins de semana. Por isso hoje gosto muito de sair sábado à tarde.
A batalha contra os próprios anticorpos foi, então, seguida de outra: a busca por engravidar. Para quem nasceu no Dia das Mães de 1981, ter um filho “era muito significativo” – mas a medicação forte levou dois bebês, e o terceiro se instalou nas trompas.
A entrega à vontade de ser mãe, por outro lado, foi como uma bomba de energia. Um ponto de virada após longos anos lidando com “o lobo” (lúpus significa lobo em latim).
“Eu quis tanto engravidar que busquei minha remissão com unhas e dentes.”
DESCOBERTA DE SI
– Você quer parar de tomar o remédio e ver como se sente?
– Eu quero. Eu consigo.
O diálogo decisivo entre a médica e Ana veio em 2016, após 20 anos ininterruptos tomando medicamentos. Com a doença regredindo, a oferta da profissional de saúde, porém, veio cercada de riscos de uma piora no quadro. Mas a cearense enfrentou.
“Quando parei, descobri algumas coisas sobre mim. Meu rosto não era redondo, minhas unhas são normais e não gosto de doce. Eu não sabia quem eu era, como era meu rosto, porque tomava desde a adolescência”, relata.
Quando fiquei ‘descorticoidizada’, comecei a enxergar o que eu realmente era. Comprei uma bicicleta, pra ir pro trabalho, e incluí o cardio na minha vida. Entrei na academia, sou completamente viciada. E, então, meus exames nunca mais mudaram.
Lúpus não tem cura, mas tem controle. Com o tratamento adequado, a doença pode entrar em remissão – período em que o paciente não apresenta nenhuma manifestação de sintomas ou sinais.
Para Ana, já são 6 anos assim.
“Essa vida que eu tenho hoje era a que eu queria viver. Eu nunca desisto. Cresci achando que eu era frágil, com as pessoas dizendo que eu não podia. Meu propósito é fazer com que as pessoas se amem, antes de qualquer coisa.”
O QUE É O LÚPUS
A doença inflamatória autoimune acomete entre 150 mil e 300 mil adultos no Brasil, cerca de 90% deles mulheres. Só no Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), uma das unidades de referência para tratamento em Fortaleza, 60 pacientes em média recebem atendimento especializado para lúpus.
Os principais sintomas do lúpus são:
- Fadiga;
- Dor;
- Inchaço ou vermelhidão nas articulações;
- Febre;
- Erupções na pele.
Entre as consequências das inflamações ou dos fármacos de uso prolongado, estão doenças renais, infecções, diabetes, hipertensão e até catarata.
A médica Nafice Costa Araújo, presidente da Sociedade Paulista de Reumatologia, ressalta que “muitas vezes os sintomas são de difícil diagnóstico”, o que, “somado à falta de disseminação de conhecimento, gera preconceito e falta de empatia com os pacientes”.
“É uma doença que pode simular outras. Isso já é, de fato, a primeira dificuldade. Mas, além disso há o desconhecimento tanto da população quanto dos colegas médicos. Muitas vezes o paciente chega até o especialista e diz que já passou por 10 médicos antes”, lamenta Nafice, destacando as desigualdades regionais no acesso ao tratamento.
“Existem, sim, desigualdades de acesso. Os melhores tratamentos e o maior número de reumatologistas estão na região Sudeste. Medicamentos de alto custo, por exemplo, conseguimos por via administrativa. Em outros estados, é preciso judicializar.
R$ 2 MILé o valor mensal de apenas um dos medicamentos de uso mais comuns entre pacientes com lúpus, segundo estima a reumatologista.
Raquel Quixadá, chefe do Serviço de Reumatologia do HUWC, destaca que a capital cearense possui outros centros de referência: como Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e Geral Dr. César Cals (HGCC). O encaminhamento é feito via postos de saúde.
Ela observa que, apesar dos distintos níveis de gravidade que a doença pode ter a depender do paciente, os tratamentos evoluíram.
“Antes, as pessoas morriam de lúpus. Hoje, a mortalidade diminuiu muito. Aumentou muito a expectativa de vida. Seguindo o tratamento, a expectativa é que a doença fique fora de atividade. O objetivo é que ele fique o maior tempo sem sintomas.”
Fonte: Assessoria de Imprensa
Descubra mais sobre Artrite Reumatoide
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.