O Dr. Filipe Henriques e o Dr. Nelson Pedro em conversa com o Jornal da Mealhada abordam a relação de proximidade entre duas especialidades médicas: a Oftalmologia e a Medicina Interna.
Nelson Pedro é Internista do Hospital da Misericórdia da Mealhada (HMM) e do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. É também o Coordenador Clínico da Unidade de Cuidados Continuados do HMM. Filipe Henriques é oftalmologista do HMM e do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. É também o coordenador da Oftalmologia no HMM.
JORNAL DA MEALHADA (JM)- Em que circunstâncias é que o Oftalmologista recorre à Medicina Interna?
FILIPE HENRIQUES (FH) – Por vezes, as doenças sistémicas têm uma primeira manifestação a nível ocular. Os doentes estão aparentemente saudáveis e manifestam um sinal ou sintoma ocular que o leva ao Oftalmologista. Por exemplo ficam com o olho vermelho, dor ocular, diminuição da visão ou apresentam flutuações recentes do estado refrativo e recorrem ao Oftalmologista. Há inúmeras doenças denominadas “sistémicas” ou “gerais”, isto é, que não têm origem nos olhos, mas que podem afetá-los. Por vezes, essas doenças deixam “marcas” típicas nos olhos o que facilita o diagnóstico, mas muitas vezes temos que recorrer ao Médico Internista para esclarecermos o que está a “atacar” o olho. Isto é importante, não só para recuperar ou preservar a visão como, por vezes, para salvar a vida de um paciente.
NELSON PEDRO (NP) – Como referido pelo Dr. Filipe, a observação do Oftalmologista poderá ser a primeira avaliação clínica de um doente com uma patologia sistémica – isto é, patologias que afectam vários órgãos e aparelhos do organismo. Ora, a Medicina Interna é a especialidade médica que, por excelência, atua neste tipo de patologias, dado que – apesar do realce da sua diferenciação – possui uma abrangência e capacidade integrativa superior a outras especialidades médicas dirigidas a um aparelho especifico.
Portanto, nestas condições, o recurso ao internista pelo oftalmologista faz todo o sentido; e é tanto mais importante, quanto mais grave for a patologia detectada.
As manifestações oftalmológicas de doenças crónicas, (por exemplo diabetes mellitus, hipertensão arterial), são conhecidas, (embora talvez ainda não de forma suficiente na população em geral), e aqui o oftalmologista pode detetar os primeiros sinais destas patologias e poderá solicitar o apoio do internista para o seu adequado controlo.
Por vezes a avaliação do oftalmologista poderá ser de extrema importância para o diagnóstico de uma patologia sistémica, porque poderá detetar lesões típicas ou “patognomónicas” (termo médico dado a um sinal ou sintoma que é característico de uma doença). Por exemplo: um olho vermelho, poderá indicar uma uveíte – condição inflamatória ocular séria – que poderá estar associada a uma doença do sistema imunitário (por exemplo, a artrite reumatoide, o Lupus ou a Doença de Crohn). Outras lesões oculares especificas poderão traduzir a presença de doenças neoplásicas (tumorais) e infeciosas (por exemplo, a temida tuberculose).
JM – Em que circunstâncias é que a Medicina Interna recorre ao Oftalmologista?
FH – Há inúmeras situações, mas poderia destacar o estudo do fundo do olho no contexto da diabetes e da hipertensão arterial e o estudo da secreção lacrimal para fazer o diagnóstico de Síndrome de Sjogren – este Síndrome é uma doença crónica inflamatória na qual o sistema imunitário, que tem como função proteger-nos de ameaças exteriores, ataca e danifica órgãos e estruturas do próprio organismo. Neste Síndrome os órgãos mais atingidos são as denominadas glândulas exócrinas como as glândulas salivares, lacrimais e as da pele. Outras estruturas podem ser atingidas, mas o papel do Oftalmologista é realizar alguns testes para avaliar a função lacrimal para ajudar o Médico Internista a fazer o diagnóstico e tratar o Síndrome de olho seco associado à doença.
NP – Para o internista é importante saber o estado dos vasos da retina. É importante saber se a Diabetes está ou não a atingir a circulação retiniana porque esta funciona quase em espelho com a circulação renal. Por outro lado, se tivermos informação por parte do oftalmologista que a Diabetes já está a atingir a retina, teremos que atuar por forma a fazer um controlo muito mais rigoroso da glicémia, das gorduras do sangue e da tensão arterial. Existe uma doença metabólica denominada doença de Wilson que provoca uma acumulação típica de cobre na córnea. Para confirmar o diagnóstico clínico, pedimos ao oftalmologista para detetar esta deposição denominada de anel de Kayser – Fleischer.
JM – quanto é que esta colaboração entre internista e oftalmologista pode salvar a vida de um paciente?
FH – Por vezes, a primeira manifestação de uma doença “geral” grave é a nível da visão. Um doente pode queixar-se que não vê bem há 2 ou 3 dias. Quando é observado, os seus olhos têm sinais de que estão a ser “atacados” por uma doença geral, como por exemplo um linfoma ou uma leucemia. A primeira atitude é pedir umas análises ao sangue e enviar para um internista. Nessa altura a colaboração tem que ser rápida porque o tempo é precioso. Para dar outro exemplo, o oftalmologista pode detetar êmbolos na circulação retiniana que podem corresponder a doenças graves como as arritmias cardíacas ou estenose carotídea (“aperto” de vasos no pescoço). Estas situações libertam êmbolos (“coágulos”) para a circulação retiniana. O seu tratamento deve ser atempado porque para além de poderem afetar a visão, também podem afetar o cérebro e provocar AVC´s (“tromboses”).
NP – Existem inúmeras doenças que podem ter uma primeira manifestação a nível dos olhos. Muitas vezes o oftalmologista tem uma ideia da doença que pode estar a afetar os olhos, mas o trabalho do internista é integrar essas suspeitas e fazer o trabalho de detetive que permite tratar a doença de base. A recuperação da visão e até a vida do doente poderá depender de um diagnóstico adequado. Muitas vezes o oftalmologista está dependente da resolução da doença de base. Um exemplo clássico é a hipertensão arterial maligna. A pessoa tem a tensão arterial tão alta que acaba por perder visão devido ao edema do nervo ótico. Assim que o oftalmologista faz o diagnóstico o doente deve ser tratado com caráter urgente e só melhora a visão quando a tensão arterial normaliza. O internista acaba por tratar a visão do doente.
Como já referido, o oftalmologista, por vezes, tem um papel fundamental na identificação de patologias sérias (auto-imunes, neoplásicas, infecciosas, etc…), já que poderá identificar lesões típicas associadas a patologias potencialmente gravosas para o doente, com risco de cegueira e até risco de vida (por exemplo se houver envolvimento do cérebro, coração e pulmões), que poderão ser evitados, em caso de diagnóstico e tratamento atempados.
JM – Tem algum caso que nos possa contar que o tenha marcado?
FH – Uma vez, um rapaz de 23 anos recorreu à minha consulta porque estava a ver “moscas”. Dilatei-lhe a pupila e vi uma massa na retina periférica que parecia ser tumoral. Enviei para um internista que logo na consulta apenas com o exame clínico lhe detetou um tumor do testículo. Obviamente ele depois fez uma série de exames para avaliar a extensão do tumor, foi tratado e ficou bem. Mas é um caso paradigmático que mostra que a primeira manifestação de uma doença potencialmente fatal pode ser oftalmológica. O doente tinha várias metástases cerebrais na altura em que foi à minha consulta, mas a primeira manifestação foi o “ver moscas”. Atenção que “ver moscas” é uma queixa muito frequente e que, na maior parte das vezes, felizmente corresponde a um processo fisiológico de envelhecimento do vítreo. No entanto, “moscas” que aparecem “de novo” devem motivar sempre a observação por um oftalmologista.
NP – Recordo-me do caso de uma senhora de cerca de 50 anos, em estudo no Hospital por uma febre de causa desconhecida, associada a emagrecimento. Apesar de múltiplos estudos efetuados e quando já se presumia que uma causa tumoral pudesse explicar a situação, acabou por desenvolver um quadro de inflamação ocular com olho vermelho e intolerância severa à luz (fotofobia). Foi solicitada avaliação de oftalmologia que detectou a presença de “tubérculos coróides” tipicamente associados a atingimento ocular de tuberculose. A hipótese de tuberculose já tinha sido posta de parte, por ausência de envolvimento pulmonar – o órgão mais frequentemente atingido.
Foi, assim, reforçada a hipótese diagnóstica de tuberculose, mais tarde confirmada com estudos complementar mais especifico, tendo iniciado tratamento, com recuperação completa do seu estado geral e ocular. Ou seja, neste caso, foi a observação pelo Oftalmologista que nos deu a “pista” decisiva para irmos na direção certa.
JM – Para finalizar, o que acham da expressão: “Os olhos são o espelho da alma”?
FH – Como ficou exposto, os olhos podem refletir o estado de saúde geral do doente. Funcionam em “espelho” relativamente a doenças de todo o tipo. Nomeadamente doenças neurológicas, doenças cardiovasculares, doenças metabólicas, doenças auto-imunes, doenças hematológicas e infecciosas. Isto quer dizer que o papel do Oftalmologista é observar o “espelho” e comunicar o que “vê” ao Internista, dando informações importantes para se chegar a um diagnóstico e tratamento adequados.
NP – Pegando nestas palavras, se a “alma” for entendida como o organismo na sua plenitude, eu diria que o Internista, com base nos alertas dados pelo Oftalmologista trata de analisar a “alma” por forma a restabelecer a saúde e bem-estar do paciente. O doente usufrui assim da colaboração e trabalho em equipa com a Oftalmologia.
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