Imagine um exército de centenas de soldados e um único objetivo: proteger você contra qualquer invasão inimiga. Até que um dia, por algum motivo desconhecido, esse batalhão simplesmente passa a atacá-lo. Grosso modo, é assim que as doenças autoimunes se manifestam. Há uma disfunção nas células de defesa que faz com que elas passem a agredir o organismo em vez defendê-lo.
Às vezes, o “ataque” é generalizado, como em alguns casos de lúpus, que pode afetar articulações, pele, rins e até células sanguíneas. Outras, a agressão é mais direcionada, como na artrite reumatoide, que tem uma clara preferência pelas articulações, seja dos joelhos, dos quadris ou dos punhos. O resultado, os portadores conhecem bem: dor e muito inchaço.
Priscila Torres, 35 anos, tem claros na memória os episódios por que passou quando a artrite reumatoide não estava controlada. Atividades simples, como pegar um copo, escovar os dentes, fechar o zíper da calça e o fecho do sutiã eram impossíveis de ser realizadas sem ajuda. O martírio começava assim que ela se levantava da cama. A passos curtos e parecendo um robô (como ela mesma descreve) devido às fortes dores que sentia nos joelhos, era uma odisseia conseguir chegar ao banheiro. “Ficava tudo inchado: tornozelo, punhos, quadril. Uma sensação horrorosa.”
O reumatologista Thiago Bitar — que curiosamente também é paciente, tendo desenvolvido um tipo de artrite na infância — explica que a rigidez matinal é característica da doença e o paciente se sente como se estivesse “enferrujado”, com o corpo travado. Um episódio de rigidez pode se estender por mais de duas horas. “Eu sei pelo que os pacientes passam, pois também senti isso. Eles não conseguem tirar o pijama porque dói. Vão pegar a xícara de café, as mãos tremem.”
É comum que a rigidez ocorra especificamente pela manhã porque o processo inflamatório faz com que, durante o repouso, as articulações acumulem líquido no seu interior. Quando a pessoa acorda, a dor é mais forte, e só diminui quando ela se movimenta o bastante para reduzir a quantidade de líquido.
A artrite reumatoide de Priscila está controlada e em remissão. A rigidez ainda faz parte da sua rotina, principalmente nos dias mais frios, mas dura poucos minutos. Ela sofreu bastante no início, quando foi diagnosticada em 2006. Primeiro, porque as pessoas não acreditavam que ela pudesse ter uma doença sem aparentar estar doente; também achavam que artrite fosse ” doença de gente idosa”. Depois, porque imaginou que as limitações progrediriam de tal modo que ela chegaria ao ponto de precisar utilizar próteses. “Eu trabalhava durante um tempo na enfermaria de Ortopedia da Escola Paulista de Medicina, onde justamente pacientes de artrite são internados para colocarem próteses”, recorda.
A artrite reumatoide é uma doença democrática, pode atingir desde crianças até idosos. Seu surgimento decorre de vários fatores, os quais incluem predisposição genética, exposição a fatores ambientais e infecções. Fatores hormonais também estão relacionados à doença, o que explica o fato de ela ocorrer três vezes mais em mulheres e apresentar melhora clínica no período da gestação.
Dor persistente
Dor simétrica é um dos sintomas característicos da artrite reumatoide. Em geral, ela atinge os dois lados do corpo (por exemplo, ambos os pulsos, cotovelos, joelhos ou tornozelos). Outros sintomas incluem inchaço (edema), aumento de temperatura na região e dor persistente, que dura dias e pode desaparecer e então voltar de repente. Também é comum o aparecimento de fadiga, pois o estado inflamatório aumenta a taxa metabólica, o que faz com que o paciente se canse mais facilmente.
Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, melhor a resposta terapêutica e maior a possibilidade de remissão dos sintomas. “O momento ideal para o início do tratamento é 12 semanas após o início dos sintomas”, alerta a médica Licia Maria Henrique da Mota, presidente da Comissão de Artrite Reumatoide, da SBR (Sociedade Brasileira de Reumatologia).
Ainda assim, muitos pacientes adiam a investigação dos sintomas, principalmente por falta de informação. Não é comum associar dor persistente a doenças reumatológicas. Portanto, em geral o paciente toma anti-inflamatórios que só mascaram os sintomas e são vendidos sem receita na farmácia. Logo depois, procura um ortopedista para tomar injeções para dor até, então, o quadro se tornar poliarticular (atingir diversas articulações). Nesse meio tempo, é comum que já tenha se passado mais de um ano desde o início dos sintomas.
Foi o caso de Josefa Menoci, 56 anos. Ela conta que chegou a ir inúmeras vezes ao ortopedista e um médico sugeriu, inclusive, que fizesse uma cirurgia no joelho. “Tomei vários remédios por um bom tempo, só que o inchaço não sumia e as dores iam e voltavam. Até que um dia, um outro ortopedista que consultei teve o bom senso de me encaminhar para um reumatologista. Só assim consegui o tratamento adequado.”
Portanto, fique atento ao sintoma de dor e suas características. “O paciente com artrite acorda com muita dor sem ter feito nenhum movimento de grande intensidade que a justifique. A dor mecânica, que qualquer pessoa pode ter, é diferente e está relacionada ao movimento. Por exemplo, quem não sofre de artrite pode ter uma inflamação quando utiliza muito as mãos ou após um exercício físico intenso, só que em geral ela passa”, esclarece o dr. Bitar.
Qualidade de vida e trabalho
“A artrite reumatoide pode se tornar uma doença bastante debilitante, com forte impacto negativo em vários aspectos na rotina do paciente”, afirma dr. Ricardo Xavier, pesquisador brasileiro e coordenador da pesquisa sobre “Empregabilidade de Pacientes comArtrite Reumatoide“, que acompanhou 309 pacientes de quatro países (Argentina, Brasil, Colômbia e México). A pesquisa foi apresentada no 19º Congresso Anual da Panlar (Liga Pan-Americana de Associações para a Reumatologia), na Cidade do Panamá, no Panamá.
Entre os pacientes pesquisados, os brasileiros apresentam a menor taxa de empregabilidade (40%), enquanto os argentinos têm a maior, com 73% dos pacientes empregados, seguidos pela Colômbia (61%) e México (54%).
Dra. Licia explica que há uma taxa de afastamento laboral muito grande quando se trata de doenças reumatológicas. Elas ocupam o 2º lugar entre as causas de afastamento do trabalho no país, de acordo com o Ministério da Previdência Social. “A questão é que a artrite reumatoide é uma doença crônica e progressiva. Se o indivíduo não recebe um tratamento adequado e contínuo, ele não consegue trabalhar”, afirma a especialista.
Patrícia, que já trabalhou como enfermeira em um hospital, conta que teve de deixar a profissão por conta da doença. “Eu trabalhava na emergência infantil e como usava muito as mãos para segurar os bebês e aplicar medicação, fui tendo dificuldades”, recorda. Ela diz que trocou o “cuidar assistencial” pelo “cuidar informacional” ao criar o Blog Artrite Reumatoide para compartilhar informações sobre esse universo que inclui 2 milhões de brasileiros (o equivalente à população de Belo Horizonte). Hoje ela é patient advocacy(pacientes que militam pela disseminação de informação e acesso a tratamentos) e graduanda de jornalismo.
Tratamentos
Por ser uma doença crônica e incurável, o tratamento requer disciplina por parte do paciente, pois só assim é possível controlar a doença e deixá-la inativa. “No começo, normalmente é preciso tomar muito remédio mesmo. Mas depois que a doença fica estável, não é preciso mais muita medicação”, salienta o dr. Thiago Bitar.
O tratamento medicamentoso inclui analgésicos, corticoides e drogas imunossupressoras, como o metrotrexato e a ciclosporina. Alguns medicamentos mais recentes, desenvolvidos por meio de tecnologias baseadas na biologia molecular, também têm se mostrado bastante eficazes.
Além do tratamento convencional, uma recomendação unânime entre os reumatologistas é incentivar o paciente a praticar atividade física diária, ou seja, durante pelo menos 30 minutos, como preconizado pela OMS (Organização Mundial de Saúde).
Fortalecer a musculatura como um todo ajuda diretamente a aliviar as dores nas articulações, já que são os músculos que dão sustentação a essas regiões. Mas atenção: as atividades não devem ser exaustivas e nem causar impacto (boxe e outras atividades de luta não são recomendadas), e, nos períodos de atividade da doença, pode ser indicado repouso.
Fonte: Drº Drauzio Varella
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