As sobrancelhas, o vermelho das vestes, as flores no cabelo e a experiência de dor são marcas indissociáveis de Frida Kahlo. Seu autorretrato com pregos perfurando todo o corpo, A coluna quebrada, um dos seus quadros mais famosos, é também indício de que a artista mexicana sofria de fibromialgia. Na tentativa de explicar os motivos para a dor crônica que acompanhou a artista durante anos, alguns autores sugerem que Frida sofria de fibromialgia pós-traumática, caracterizada por dor generalizada persistente, fadiga crônica, distúrbios do sono e pontos dolorosos em regiões anatômicas bem definidas. Esse conceito de fibromialgia, tal como entendido atualmente, provavelmente não era disseminado entre os médicos do século 20.
Quando Frida pintou A coluna quebrada, em 1944, a associação de pontos dolorosos com reumatismo já tinha sido citada há pelo menos 120 anos. Em 1824, o cirurgião escocês William Balfour foi o primeiro a descrever pacientes com pontos musculares hipersensíveis à palpação e passíveis de desencadear uma dor irradiada. A fibromialgia não é uma doença nova, como muitos imaginam. Historicamente, ela vem sendo apresentada com diferentes nomes: fibrosite (1904), miofibrosite (1929), síndrome fibrosítica (1952), síndrome fibromiálgica e, por fim, fibromialgia (1981). Com este nome, em 1992, foi reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma doença reumática. Mas, mesmo tanto tempo depois, segue sendo questionada pela sociedade, pelos familiares dos pacientes e mesmo por alguns profissionais de saúde.
ASSOCIAÇÃO
Para os fibromiálgicos, pessoas mais sensíveis à dor que a população em geral, tamanha desconfiança e descrença também dói. A aposentada Sandra Santos, de 53 anos, foi diagnosticada em 2005 e, em uma atitude positiva frente ao sofrimento, fundou a Associação Brasileira dos Fibromiálgicos (Abrafibro) com outros pacientes. Para tratar um problema de coluna, foi encaminhada para um tratamento que não conseguiu levar adiante. “Entrava andando e saía de cadeira de rodas. Insisti até a oitava sessão, mas a médica responsável estranhou meu limiar de dor ser tão pequeno. A especialista que me acompanhava desconfiou que pudesse ser fibromialgia e, no exame clínico, identificou que eu tinha 11 dos 18 pontos de dor. Já tinha fibromialgia, mas, provavelmente, ela estava sendo mascarada pelo problema de coluna”, lembra Sandra.
O reumatologista Luiz Severiano Ribeiro, do Serviço de Reumatologia do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg), lembra de um tempo em que os próprios pacientes não acreditavam no diagnóstico, mesmo que ele justificasse a dor, que consideravam “inexplicável”, tamanho era seu incômodo. “Chegavam reclamando de dor e cansaço, mas não levavam a sério o diagnóstico. Primeiro, não entendiam o nome. Além disso, os exames clínicos não apontavam nada e receitávamos antidepressivo. Achavam que fibromialgia era coisa de doido e, quando procuravam outro médico e contavam o que o reumatologista tinha dito, ouviam que precisavam mesmo era de psiquiatra. Essa era a clássica trajetória de um fibromiálgico 20 anos atrás. Pulavam de um médico para outro sem uma explicação e, quando recebiam o diagnóstico, não acreditavam”.
Sensibilidade aumentada
Nos últimos anos, houve um grande avanço na compreensão da fibromialgia, que é considerada uma síndrome por englobar uma série de manifestações clínicas, como dor, fadiga, distúrbio do sono. Segundo Eduardo Paiva, chefe da Comissão de Dor e Fibromialgia da Sociedade Brasileira de Reumatologia, professor assistente da Universidade Federal do Paraná e chefe do Ambulatório de Fibromialgia do Hospital das Clínicas da UFPR, está cada vez mais estabelecido que a fibromialgia é um problema de sensibilização do sistema nervoso, que estaria programado para sentir mais dor. Exames como a ressonância magnética funcional, capazes de mostrar o funcionamento do cérebro em tempo real, revelam a intensidade amplificada da dor, tal como relatada pelos pacientes. “O sistema nervoso pode ser modulado, amplificado. Na fibromialgia essa modulação é para mais. Como se tivéssemos um botão de volume capaz de aumentar a sensibilidade à dor.
As pessoas que sofrem de fibromialgia têm um limiar de dor rebaixado. Estímulos que normalmente não causam dor em outras pessoas, como um carinho, podem ser dolorosos para o fibromiálgico. Segundo Roberto Heymann, reumatologista do Hospital Albert Einstein e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), isso ocorre devido a um desarranjo dos mecanismos que controlam a dor no sistema nervoso central. “As causas desse controle inadequado dos mecanismos da dor são desconhecidas. Acredita-se numa predisposição genética que, quando exposta a alguns fatores ambientais, gere o quadro de fibromialgia. O que sabemos é que os mecanismos do sistema nervoso central associados à sensação e transmissão da dor encontram-se exacerbados e os mecanismos que deveriam inibir ou filtrar essas sensações estão diminuídos, permitindo uma transmissão anormal de estímulos de dor ao cérebro”, explica.
Além disso, há fatores externos que influenciam a transmissão e a sensação de dor. O estado emocional e o frio são alguns deles. A depressão, por exemplo, pode ser uma das consequências da fibriomilgia, como em tantas outras doenças crônicas, mas também o gatilho que faltava para desencadear um quadro de fibromialgia na pessoa geneticamente predisposta. Segundo Heymann, a saúde emocional tem influência direta em todas as doenças, não só na fibromialgia. “Quantas pessoas têm picos de hipertensão porque ficaram nervosos e ansiosos, por exemplo? Mas na fibromialgia, pelo fato da dor ser subjetiva, a influência que a emoção exerce na sua intensidade muitas vezes gera preconceito. O fato é que uma pessoa deprimida efetivamente sente mais dor que a população normal, pois sua sensibilidade dolorosa encontra-se exacerbada. Dessa forma, fica fácil entender que a depressão piora os quadros de fibromialgia”, explica.
Qualquer quadro de dor crônica também prejudica o sono, pois frequentemente o paciente acorda pela dor. Mas na fibromialgia alterações hormonais e de neurotransmissores também são responsáveis pela superficialização do sono e pela sensação de fadiga. A maioria das pessoas que sofre de fibromialgia, portanto, tem um sono superficial e leve em que não descansam, e por consequência ficam fatigados e sem energia. Dor generalizada, dificuldades para dormir ou despertar com cansaço e sensação de cansaço ou fadiga durante todo o dia são os principais sintomas da doença. Aos 84 anos, Maria Joana das Mercês chegou a duvidar de tinha realmente dormido durante a noite, ou se era um sonho. Frequentadora do grupo de educação do paciente fibromiálgico, realizado há mais de 20 anos no Ipsemg, hoje ela sabe lidar melhor com os sintomas, mas eles não deixaram de incomodar. “Durmo e levanto pensando se realmente dormi. E a dor é insuportável. Ninguém merece”, lamenta.
A COLUNA QUEBRADA
No artigo Arte e dor em Frida Kahlo, de 2014, Rodrigo Siqueira Batista e coautores buscam, na biografia e obra da artista mexicana, interseções entre sua arte e experiências de dor. Para os autores, em A coluna quebrada, na qual ela se retrata usando o colete de aço para controle do quadro de dor, os pregos encravados em seu corpo nu traduzem um infindável martírio. “O corpo de Frida está dividido, sangrando, pregado e isolado, transparecendo pois, o suplício físico que nunca a abandonou ao longo da vida.” No filme Frida, de 2003, em um dos diálogos, ela chega a dizer: “Nem lembro como era antes da dor”. A solidão, metaforizada pela paisagem desértica, reforça o sofrimento. O corpo aberto é uma referência às várias cirurgias às quais se submeteu para reparar a coluna, sem melhoria de suas queixas. Já os pregos fincados sugerem os típicos pontos dolorosos da fibromialgia. Para os pesquisadores, essa hipótese explicaria a dor crônica e a fadiga profunda experimentadas pela pintora.
Fonte: Uai
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