Doença que, estima-se, atinge cerca de 1,5 milhões de pessoas em Portugal, a enxaqueca pode ser profundamente debilitante. Mas hoje, utilizando os mais recentes avanços na investigação neurológica e genética, existem novos tratamentos. O mais recente permitiu descobrir o agente responsável pelo desencadear ou intensificar de uma crise de enxaqueca e avanços na medicina ajudam a combatê-lo. Este é o ponto de partida para esta entrevista, feita por e-mail, a Isabel Luzeiro, presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia.
Há pessoas que dizem parecer que estão enlouquecendo quando têm dores de cabeça fortes ou enxaquecas. O que é que está efetivamente a acontecer no seu cérebro?
O que acontece frequentemente é que a dor por vezes é tão, tão intensa, que é muito mal tolerada. E está associada a uma dilatação dos vasos sanguíneos. O envolvimento de outras áreas do cérebro provoca também hipersensibilidade à luz e ao barulho, náusea ou até vômito, e por vezes vertigem. Alguns doentes têm ainda o nariz “pingando” (corrimento nasal), uma urgência de urinar ou abrir a boca, outros têm alterações visuais. Mesmo nos doentes que toleram a dor, a frequência dos episódios e o tempo de duração (duas a quatro horas) exasperam-os. Ora, se a dor já é difícil de tolerar, toda esta constelação é o caos. Interfere com o dia a dia, diminuindo muito a qualidade de vida.
A investigação mais recente dá conta de que o CGRP será responsável pelo desencadear de uma crise de enxaqueca. O que é o CGRP?
CGRP é a sigla de um neuropeptídio [ler abaixo] relacionado com o gene da calcitonina (calcitonina gene-related peptide). Os níveis de CGRP no sangue estão aumentados durante as crises de enxaqueca e mesmo no intervalo das crises, principalmente se a enxaqueca for frequente ou crônica.
O CGRP é sintetizado em vários locais do corpo, como o cérebro (alfa-CGRP) e o intestino (beta-CGRP), a partir do gene da calcitonina, localizado no cromossoma 11, e tem uma função reguladora no nível do cérebro, sistema intestinal e no controlo da dor.
Neuropeptídios são “mensageiros” químicos produzidos pelos neurônios (as células nervosas do cérebro, por exemplo) que permitem a comunicação entre estas, modulando a atividade cerebral. Tem também um papel importante em outros órgãos, como o coração ou os intestinos. Existe mais de uma centena de tipos conhecidos.
Há alguma preponderância do CGRP nas mulheres vs. homens? É um dado conhecido que as crises de enxaqueca são mais prevalentes nas mulheres…
De fato, atinge duas a três vezes mais as mulheres. Mas há outros fatores: há outros neuropeptídios e neurotransmissores envolvidos e temos de considerar o fator genético, a hereditariedade.
Se a mãe tem enxaqueca, a probabilidade de transmiti-la é de 66%, se ambos os pais tiverem enxaqueca esse risco é de 77%. Isto quer dizer que há um predomínio de transmissão pelo sexo feminino. Temos ainda fatores hormonais, como os associados à menstruação, e os psicológicos, como a ansiedade e depressão, que também são mais frequentes na mulher.
Que medicamentos já existem no mercado para parar a CGRP?
A toxina botulínica tipo A, o botox, que atua também no CGRP. Trimestralmente administra-se o fármaco em 31 pontos da cabeça, via subcutânea. E agora os mAbs [ler abaixo] estão também disponíveis
mAbs ou anticorpos monoclonais são produzidos pela clonagem de um único glóbulo branco, com um só propósito – uma única função genética -, pelo que todos têm o mesmo alvo específico. Esta técnica aplicada em bioquímica permite criar fármacos extremamente precisos, que atacam a doença na origem sem efeitos secundários.
O que são e como funcionam os mAbs, os anticorpos monoclonais?
Os anticorpos monoclonais utilizados na enxaqueca são fármacos que bloqueiam o CGRP diretamente (anti-CGRP) ou bloqueiam os receptores onde o CGRP se iria ligar. São usados na enxaqueca frequente (mais de quatro crises por mês) ou crônica. Em Portugal dispomos de três fármacos: dois que se ligam diretamente ao CGRP e um que se liga ao receptor impedindo a ação do CGRP, com administração injetável e de periodicidade mensal ou trimestral. Têm um perfil de segurança e de efeitos adversos muito favoráveis e um ótimo controlo da dor logo desde o início.
Que sintomas devem uma pessoa ter para se considerar “candidata” a um tratamento deste tipo?
Ter enxaqueca frequente ou crônica e ter já feito tratamento com três fármacos diferentes indicados para a prevenção ou ser alérgica ou mesmo não tolerar [estes últimos], devido a efeitos adversos ou outras doenças concomitantes.
Bastará ir ao seu médico de família ou terá de procurar um médico mais especializado?
Os mAbs são prescritos no hospital e cedidos pela farmácia hospitalar. Não existem disponíveis para prescrição em ambulatório. Cabe ao médico de família orientar o doente para uma consulta especializada em cefaléias.
Uma enxaqueca ou cefaléia pode ser tão violenta que provoque danos permanentes no cérebro?
Com a repetição das crises ficam pequenas mazelas no cérebro, quer anatômicas, quer funcionais.
Por outro lado, durante uma crise, embora raramente e mais nas mulheres que usam a pílula e têm enxaqueca com aura, pode ocorrer um evento vascular, um infarto migranoso.
Há uma idade-tipo para a enxaqueca?
Sim, de fato é na terceira e quarta década que a enxaqueca é mais frequente. Nos rapazes surge habitualmente mais cedo. Com a menopausa, a enxaqueca desaparece em dois terços das mulheres.
Há uma dieta alimentar que possa minimizar ou aligeirar a ocorrência de cefaléias?
Cada doente reconhece os alimentos que lhe desencadeiam a enxaqueca. No entanto, o chocolate, o vinho, os morangos, o glutamato monossódico [ler abaixo]…
Para além da alimentação, as alterações do sono, as mudanças do tempo, o cansaço, as alterações hormonais, etc., podem desencadear enxaqueca.
Glutamato monossódico é um aditivo que se associa aos alimentos para realçar sabor; é usado nos restaurantes chineses e nos cubos que se juntam aos alimentos na cozinha, comida com nitratos como os cachorros-quentes, alimentos que contêm tiramina, como queijos maturados, soja, favas, peixe fumado ou desidratado e alguns tipos de frutas secas.
Alguma vez teremos uma cura?
Sim, cada vez mais temos uma medicina de precisão dirigida à causa das patologias. Sabida toda a constelação etiológica, surgirá à cura, em minha opinião.
As dores de cabeça são com ela
Presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia há dois anos, a neurologista Isabel Luzeiro (pela Universidade de Coimbra) tem ainda especialização em Ciências da Dor. Além disso, graduou-se em eEG/neurofisiologia clínica e tem competências ao nível do estudo do sono. A experiência adquirida e a atividade permanente – atualmente dá consultas na CUF Coimbra – permitem-lhe ter uma perspectiva atualizada do conhecimento científico de uma área cuja evolução não para de progredir. Os atuais tratamentos não existiam há uma década.
Fonte: Diário de Notícias
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