No ranking das doenças não transmissíveis mais prevalentes no globo, as que afetam a cavidade oral ocupam o primeiro lugar, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). São ao menos 3,58 bilhões de pessoas com algum tipo de problema na boca. Um dos mais graves é a periodontite, processo inflamatório que afeta os tecidos de suporte dos dentes e é causado por bactérias que aderem e crescem na superfície dentária.
Em consequência, o sistema imunológico deflagra uma resposta bastante agressiva. O resultado é a perda progressiva de ossos e da dentição. A estimativa é de que 35% da população mundial tenha a forma moderada da doença, e 11%, a severa.
Os malefícios da periodontite não se encerram na boca. Enquanto especialistas já conheciam a associação entre ela e o diabetes, além da doença coronariana, pesquisas recentes têm encontrado relação do processo inflamatório com numerosas condições, incluindo artrite reumatoide, resistência à insulina, Alzheimer, alguns tipos de câncer, males respiratórios e disfunção erétil, entre outros.
Embora os mecanismos por trás do papel desempenhado pela periodontite nessas doenças ainda não tenham sido completamente esclarecidos, há um corpo crescente de estudos na literatura médica que procuram desvendá-los. Um deles, publicado neste ano no Journal of Periodontology por pesquisadores da Universidade de Hong Kong, avaliou a ficha médica de 488 pessoas atendidas no Hospital Dental Príncipe Philip, na ilha, que apresentavam algum grau de periodontite.
Dezoito anos depois, aquelas com a infecção mais severa tiveram maior risco de desenvolver oito comorbidades — das quais estavam livres quando foram pela primeira vez à clínica odontológica —, comparadas às com a forma leve da infecção. Diabetes, doenças cardiovasculares, obstrução pulmonar crônica, derrame, câncer, prejuízo cognitivo, hipertensão e dislipidemia (colesterol elevado ou gorduras no sangue) foram mais prevalentes nos pacientes com pior grau de periodontite.
“Dentro das limitações desse estudo de corte de 18 anos, nossas descobertas fornecem a primeira evidência de que a doença periodontal, até certo ponto, reflete a suscetibilidade do paciente ao aparecimento de comorbidades sistêmicas comuns”, observaram os autores, no artigo.
Por ora, a maioria das pesquisas nessa área é epidemiológica e observacional; ou seja, não estabelece uma relação de causa e efeito. Contudo, especialistas acreditam que tanto os micróbios excessivos na boca quanto o processo inflamatório estejam associados aos efeitos sistêmicos verificados em estudos recentes.
“A associação microbiana entre doença periodontal e outras enfermidades diz respeito à passagem de patógenos da cavidade bucal para a corrente sanguínea, podendo provocar ou agravar doenças em outras partes do corpo”, explica Elisa Gril-lo, especialista em periodontia da Perio Life e pesquisadora voluntária do Hospital Universitário de Brasília (HUB), onde estuda a associação da periodontite com diabetes.
De acordo com a dentista, a outra hipótese bem-aceita na comunidade médica refere-se à característica imuno-inflamatória da doença periodontal. “Ela diz respeito à resposta do hospedeiro, que induz a liberação de citocinas pró-inflamatórias, contribuindo para o aumento da inflamação sistêmica, uma condição relacionada a diversas doenças. Outro importante fator inflamatório aumentado na presença da doença periodontal é o estresse oxidativo, que está associado a alterações sistêmicas pelo seu potencial risco de dano celular”, explica.
Artrite
Uma das doenças reumáticas mais comuns no mundo, com 2 milhões de pessoas diagnosticadas apenas no Brasil, a artrite reumatoide (AR) também está associada à periodontite, com diversos estudos encontrando uma forte relação entre as duas enfermidades. No Brasil, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fizeram a revisão de pesquisas que avaliaram esse tema, buscando trabalho nos principais bancos de dados de artigos científicos.
O resultado, publicado na Revista Brasileira de Reumatologia, mostrou que pacientes de artrite reumatoide que sofrem de periodontite apresentam melhora significativa na atividade da doença reumática quando submetidos a tratamento odontológico não cirúrgico. Alguns marcadores da AR também foram reduzidos, mas em menor intensidade.
O contrário também já foi observado. Segundo a reumatologista Débora Cerqueira Calderaro, autora do artigo de revisão, alguns medicamentos desenvolvidos para o tratamento da doença reduziram a perda do osso alveolar, que sustenta os dentes, em pacientes com ambas as complicações.
A pesquisadora da UFMG explica que a periodontite é mais frequente e mais grave em pacientes da doença reumática. Em outro estudo do qual ela participou, foram avaliadas 42 pessoas com AR. Metade tinha doença periodontal. “A frequência e a gravidade da periodontite foram semelhantes entre esses pacientes e indivíduos saudáveis que avaliamos também. Mas os indivíduos com artrite reumatoide apresentaram mais espécies de bactérias relacionadas à periodontite e maior quantidade de mediadores inflamatórios na saliva, que leva a maior destruição periodontal”, explica.
Débora Cerqueira Calderaro cita dois estudos brasileiros, conduzidos por outros grupos de pesquisadores, que também encontraram associação entre as doenças. Um deles detectou melhora na inflamação das articulações em pessoas que fizeram tratamento odontológico, enquanto o outro constatou que pacientes com AR tinham menor número de dentes, mais placa bacteriana e mais perda de inserção dentária no osso alveolar — complicações da doença periodontal.
Quais são as hipóteses mais aceitas para explicar o fato de a doença periodontal se associar a tantas enfermidades?
O corpo humano é todo interligado. O sangue que corre na gengiva é o mesmo que irrigara outras partes do corpo. Por isso que as bactérias presentes na boca podem cair na corrente sanguínea e causar consequências mais graves em outros órgãos. As doenças periodontais começam silenciosas. Em muitos casos, os pacientes vão deixando esses sinais de lado, e a doença avança.
Um estudo da Universidade de Hong Kong encontrou associação da periodontite com oito doenças comuns. Quais as implicações dessa descoberta?
Temos a confirmação de que a saúde começa pela boca. Os alimentos têm que ser muito bem mastigados para que tenhamos uma boa digestão e para levar energia a todo o corpo. Depois disso, é importante higienizar a cavidade bucal, evitando que bactérias fiquem alocadas na gengiva, causando problemas gengivais e disseminado doença.
“Indivíduos com artrite reumatoide apresentaram mais espécies de bactérias relacionadas à periodontite e maior quantidade de mediadores inflamatórios na saliva, o que leva a maior destruição periodontal”
Débora Cerqueira Calderaro, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais
Relação direta com o Alzheimer
Neste ano, um estudo publicado na Science Advances foi além dos dados observacionais e conseguiu relacionar diretamente a periodontite com o Alzheimer. Pesquisadores norte-americanos, australianos e europeus descobriram, no cérebro de pessoas com esse tipo de demência, a bactéria Porphyromonas gingivalis, extremamente maléfica e presente na boca de quem tem doença periodontal.
Analisando o tecido cerebral de pessoas mortas com e sem Alzheimer e idades aproximadas quando faleceram, a equipe constatou que o patógeno agressivo era mais comum no primeiro caso, o que foi confirmado pela “impressão digital” do DNA da P. gingivalis nas amostras e pela presença das principais toxinas da bactéria, as gengivinas, no cérebro de quem teve demência.
Depois, os cientistas voltaram a pesquisar a relação do micro-organismo com o Alzheimer; dessa vez, em modelos animais. A ideia era entender como o patógeno chegava ao cérebro, ajudando a provocar os danos que levam à neurodegeneração. Eles descobriram que a P. gingivalis consegue migrar da boca para o cérebro e que, para evitar que a bactéria libere toxinas no órgão, é possível bloqueá-la com substâncias químicas que interagem com as gengivinas.
Um desses compostos, o COR388, está sendo usado em um estudo clínico de fase 1 para combate do Alzheimer. Mas Jan Potempa, professor da Universidade de Louisville e um dos autores do artigo, ressalta a importância de fazer a prevenção, especialmente nos casos de quem tem suscetibilidade genética à doença. “A higiene oral é muito importante por toda a vida. Não apenas para ter um sorriso bonito, mas para reduzir o risco de muitas doenças sérias”, ressalta. (PO)
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