Imagine o seguinte quadro: uma pessoa acorda e sente os músculos rígidos; espreguiça para relaxar e sente dor e inchaço nas articulações; ao levantar, derruba o celular, e ao abaixar para pegá-lo, sente dor nas costas. Quantos anos você daria para esse paciente?
Parece improvável, mas ele pode ter 8 anos e, naquela ocasião, estava em um dia normal acordando para ir para a escola. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a artrite não é uma doença que atinge apenas os idosos. Ela pode acometer pacientes muito mais jovens e causar grande impacto na qualidade de vida deles e da família.
Os sintomas listados acima são apenas alguns possíveis sinais da artrite idiopática juvenil (AIJ), um conjunto de doenças que acomete crianças de 6 meses até os 16 anos. A AIJ tem caráter autoimune (o próprio organismo dispara reações que provocam a doença), causa desconhecida (idiopática) e é caracterizada por inflamação que dura no mínimo 6 semanas em pelo menos uma articulação. Além da dor e do inchaço, pode haver aumento de temperatura na região atingida e outros sintomas que vão variar conforme o tipo específico de artrite:
- AIJ poliarticular: atinge 5 ou mais articulações;
- AIJ oligoarticular: atinge 4 ou menos articulações;
- AIJ sistêmica: atinge todo o organismo, não apenas as articulações;
- psoríase;Artrite psoriásica juvenil: artrite associada a
- Artrite relacionada com entesite: atinge a região em que tendões se unem aos ossos e pode comprometer a coluna.
Em certos casos, não são somente as articulações que sofrem. Em todos os tipos, mas principalmente na AIJ oligoarticular, pode ocorrer também uma complicação chamada uveíte, inflamação do olho que pode levar à cegueira se não for tratada adequadamente. Os principais sintomas são vermelhidão no olho, dificuldade para enxergar e incômodo com a luz.
Porém, em alguns casos a inflamação pode ser assintomática; ou seja, quando se sabe que a criança tem artrite, é importante levá-la ao oftalmologista regularmente mesmo que ela não apresente sintomas. Existem outras complicações relacionadas à artrite na infância, como problemas nos pulmões ou nódulos na pele, mas são mais raras.
No tipo sistêmico, além das dores articulares a criança tem febre alta, geralmente duas vezes ao dia, durante semanas ou meses, que pode vir acompanhada de erupção cutânea (pontinhos vermelhos que surgem no tronco, nos braços e nas coxas). Outros sinais são fadiga, mal-estar, gânglios aumentados (especialmente na região do pescoço) e aumento do fígado e do baço. Daí o nome “sistêmico”, que significa que o organismo é afetado de forma generalizada.
Diagnóstico e desconhecimento sobre a artrite idiopática juvenil
As dificuldades ao abordar a artrite idiopática juvenil começam no diagnóstico, por conta do “idiopática”. Antes de se diagnosticar uma condição que não tem causa definida, é preciso excluir outras enfermidades. “Existem várias doenças que podem causar artrite.
Doenças oncológicas, como a leucemia, por exemplo. Então, quando o médico atende uma criança com artrite, ele precisa descartar outras causas. Se não encontrar nada e a artrite persistir, ele vai chegar a esse diagnóstico”, explica o dr. Claudio Len, reumatologista pediátrico, professor associado da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do Departamento de Reumatologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP).
O desconhecimento sobre a doença e a ideia de que artrite é uma doença da velhice é outro empecilho para o diagnóstico, pois muitos pais associam as queixas dos filhos a problemas mais comuns, como dores de crescimento, que não causam nenhum comprometimento articular grave. Ou pensam que a criança está sentindo dor porque caiu durante alguma brincadeira ou jogo e acabou se machucando – mesmo que ela não atribua a dor a nenhum acidente.
“Infelizmente, temos a ideia de que crianças não apresentam doenças reumáticas. Porém, a prevalência da AIJ é de 1 para cada 1000 crianças, o que a torna a ‘causa’ de artrite crônica mais comum na infância. O atraso no diagnóstico tem impacto direto na qualidade de vida da criança e de sua família”, afirma a dra. Daniela Mencaroni, reumatologista pediátrica do Hospital Infantil Sabará.
É o caso de Oscar, de 6 anos. Ele tem o tipo poliarticular, que atinge mais de cinco articulações, e precisou passar por oito médicos diferentes até que a possibilidade de uma doença reumática fosse levantada.
“O Oscar começou a mancar após uma queda simples em casa, em março de 2018. Desde então, ele foi piorando, começou a reclamar de dores, ora em uma perna, ora em outra. Como ele tinha apenas 5 anos, ainda não sabia explicar ao certo o que sentia. Evitava se movimentar. Dormia sentado e, na mesma posição em que dormia, ele acordava”, conta a mãe, a economista Vânia Vieira.
Segundo Vânia, a família consultou pediatras, neuropediatras, ortopedistas e até psiquiatras e psicólogos para tentar descobrir a causa das dores. Depois de muitos exames e nenhum resultado, os médicos chegaram a indicar que o problema poderia ter fundo emocional e receitaram antidepressivos.
Apenas em setembro, seis meses depois do início da peregrinação a profissionais de saúde, quando Oscar já estava sem andar e chorava com dores diariamente, ele recebeu o diagnóstico de artrite, durante uma internação. “Antes do diagnóstico, eu não tinha escutado absolutamente nada sobre artrite juvenil. Mesmo em buscas incessantes na internet, tentando identificar a possível doença do meu filho, não encontrei nada que pudesse me indicar esse possível diagnóstico”, relata a mãe.
Limitações e impacto na qualidade de vida
Mesmo que sintomas diversos possam ocorrer, a dor nas articulações pode ser suficiente para ser incapacitante. As limitações variam conforme as articulações acometidas:
- Artrite no quadril, joelho ou tornozelo: limitação na marcha, dificuldade para andar, correr, subir escadas e fazer atividades comuns do dia a dia;
- Artrite na sacroilíaca (articulação na região da bacia): limitação na flexão do tronco, dificuldade para abaixar e pegar objetos;
- Artrite no punho, dedos da mão, cotovelo ou ombro: limitação do membro superior, dificuldade para abrir caixas, maçaneta do carro e portas em geral, colocar algo em cima de uma prateleira e pentear o cabelo, por exemplo.
De acordo com o dr. Len, os médicos conseguem medir o grau de comprometimento e dar uma nota para a limitação articular. Se a dor é capaz de impedir atividades como girar uma maçaneta, é possível imaginar o impacto que tem no cotidiano de uma criança. Elas têm dificuldade para praticar esportes ou qualquer outra atividade física, muitas vezes não conseguem participar de certas brincadeiras ou mesmo ir à escola.
Tais desdobramentos acabam gerando consequências sociais e emocionais. “Estudos que comparam crianças que não têm doença nenhuma com crianças que têm AIJ mostram que a qualidade de vida realmente é diminuída nesses pacientes. Felizmente, hoje o tratamento é muito eficaz e grande parte das crianças volta a ter uma vida normal, como a dos seus amigos”, afirma o médico.
Oscar está em tratamento há quase 1 ano, mas ainda não voltou a andar. “Devido às dores e dificuldade de mobilidade, ele não está frequentando a escola. Por enquanto, ele não realiza nenhuma atividade normal de uma criança, pois as limitações e dores ainda são bem significativas”, relata a mãe.
Tratamento da artrite idiopática juvenil
O tratamento da AIJ vai depender do tipo, da gravidade e do número de articulações acometidas. O dr. Len explica que hoje existem diretrizes muito bem estabelecidas para tratar a doença. O tipo oligoarticular, por exemplo, pode ser tratado com corticoides, enquanto o sistêmico pode exigir o uso de medicamentos biológicos.
“Esses são medicamentos mais sofisticados, que bloqueiam a reação química da inflamação, e com eles a gente consegue interromper o processo inflamatório com segurança. Devem ser prescritos de acordo com vários critérios. Quem é habilitado para tratar a AIJ é o especialista em reumatologia pediátrica”, afirma. Contudo, ainda são poucos médicos no Brasil com essa especialidade. Na falta dele, recomenda-se buscar um reumatologista de adultos, mas sem deixar de lado a avaliação do pediatra.
O tratamento ideal ultrapassa o campo da Medicina. Muitos pacientes precisam fazer reabilitação com fisioterapeuta e terapeuta ocupacional, além de seguir acompanhamento psicológico, pois o impacto emocional pode ser muito grande, tanto para a criança quanto para a família.
“Também é essencial que a criança se mantenha ativa e realize atividade física regular para promover a inclusão social e a melhora na qualidade de vida”, afirma a dra. Daniela. Embora pareça contraintuitivo, o movimento ajuda a restaurar e manter a função articular, além de evitar deformidades e incapacidades na articulação acometida.
Após quase um ano de tratamento, Oscar não tem reagido à medicação conforme esperado. Ele faz uso de medicamentos anti-inflamatórios, antimetabólicos e biológicos, além de fisioterapia e acompanhamento psicológico. “Ainda temos um longo caminho pela frente, mas sabemos que assim que a medicação certa for encontrada, com todo o acompanhamento e cuidado que ele tem recebido, tudo vai voltar ao normal. Embora não tenha cura, a artrite tem tratamento e a criança pode, sim, voltar a viver uma vida normal e feliz”, diz Vânia.
Remissão da artrite idiopática juvenil na fase adulta
Quando a criança recebe o tratamento adequado, a doença pode entrar em remissão, ou seja, deixar de apresentar sintomas. É como se estivesse “adormecida”. Segundo o dr. Len, atualmente o prognóstico é muito bom e a remissão ocorre em cerca de 70% dos pacientes, que chegam à fase adulta sem grandes problemas. Porém, por se tratar de uma doença autoimune, de causa desconhecida, ela sempre pode voltar, em qualquer idade. E é o que acontece com os outros 30%.
Às vezes, ela retorna depois de muitos anos. Nesse casos, não há outra opção senão tratar novamente. “Não dá para saber em quem a doença vai voltar. É uma ‘loteria’. Mas nós temos hoje um arsenal terapêutico moderno, que nos permite tratar desde os casos mais simples até os mais complexos, e essas crianças conseguem levar a vida normalmente. Muitas ficam sem artrite para o resto da vida. Já vi algumas que tiveram a doença com 4 anos de idade e, 20 anos depois, não têm mais nada, assim como há aquelas em que a artrite retorna”, afirma o especialista.
O cenário é otimista para as crianças que recebem tratamento. Contudo, sem ele o prognóstico é o oposto. Se a doença não for devidamente tratada, a inflamação progride tanto que destrói a articulação e pode invadir o osso. “O osso é um tecido que não se regenera, assim como a cartilagem.
E a cartilagem de crescimento, que é essencial para o crescimento, pode ser comprometida de tal forma que muitas crianças com doença mais grave acabam com baixa estatura na vida adulta”, explica o médico. “A gente fala que todo mundo tem uma janela terapêutica. É preciso tratar a doença nos primeiros 6 meses dos sintomas. Se passar disso, fica bem mais difícil.”
O primeiro passo para evitar sequelas é tirar da cabeça que artrite está automaticamente relacionada ao envelhecimento. Saber que jovens podem ser atingidos dá aos pais a oportunidade de eles próprios levantarem a suspeita diante da desinformação do meio médico, e essa pode ser a diferença para evitar maiores dificuldades. “O atraso do diagnóstico fez toda a diferença, porque ele já chegou ao hospital com muitas dores e muitas articulações comprometidas, o que está dificultando o tratamento. Mas seguimos em frente”, afirma Vânia.
Fonte: Panorama Farmaceutico
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