Quando a crise sanitária da Covid-19 atingiu o Brasil, em 2020, o país correu para suprir a demanda de máscaras, luvas, seringas e ventiladores. Quase todo o material essencial no enfrentamento da pandemia vinha (e ainda vem) de fora. Os reveses nessa disputa no mercado internacional, principalmente num momento de elevada demanda global, escancararam a dependência do setor de saúde em relação às importações.
Dados do Ministério da Saúde mostram que metade dos equipamentos médicos usados no Brasil são importados. Quando se fala em IFA (ingrediente farmacêutico ativo), 95% dessa matéria-prima para produção de insumos como vacinas e medicamentos é comprada de outros países.
Para começar a mudar esse cenário, o governo federal anunciou, no dia 3 de abril, a criação do Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Geceis), para formular e promover medidas que fortaleçam a produção e a inovação na Saúde — tanto na área de insumos e medicamentos como na de equipamentos e dispositivos médicos.
A iniciativa sucede o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (Gecis), extinto em 2019 e retomado em setembro do ano passado. O novo grupo conta com 20 ministérios e órgãos federais, além de 30 associações dos segmentos de fármacos e química fina, biotecnologia, equipamentos, materiais, tecnologia e serviços para a saúde, com a coordenação do Ministério da Saúde e do Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio.
O principal objetivo do Geceis é criar um complexo industrial no setor que responde por 10% do PIB, mas tem um déficit comercial que já atingiu US$ 20 bilhões em importações, dos quais o subsistema de base química e biotecnológica contribui com 83%. O segmento de medicamentos e fármacos responde por 75%. Os dados são da pesquisa Conta-Satélite de Saúde 2010-2019, do IBGE.
“Não é uma meta virar autarquia, não ter relações internacionais. Mas não é razoável a gente ter o maior sistema universal do mundo de saúde e depender em 80% de matérias primas farmacêuticas produzidas no exterior”, disse Carlos Gadelha, Secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde, em entrevista ao JOTA em março.
O governo aposta na colaboração entre setor público e privado, por meio das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), para financiar o complexo industrial. “Já fizemos isso com o programa de fabricação de genéricos, por exemplo. O setor privado é essencial na complementaridade de uma agenda de desenvolvimento nacional de fármacos e biofármacos”, afirma ao JOTA José Luis Gordon, diretor de desenvolvimento produtivo, comércio exterior e inovação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Para Henrique Tada, diretor técnico-executivo da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac), trata-se de uma questão de soberania nacional. “Nos anos 1980, o Brasil chegou a ser o quinto produtor de IFA do mundo. A prioridade é pelo menos diminuir nossa dependência de importação de 95% para 80%. Estamos vivendo, já há alguns anos, a saída do país de multinacionais farmacêuticas. O custo Brasil está muito alto, então precisamos desenvolver nosso próprio parque industrial”, explica.
Desafios do Complexo Industrial da Saúde
A aposta federal em parcerias público-privadas para a criação do complexo industrial da saúde não é simples. Se mesmo antes da pandemia havia um certo descrédito em relação às PDPs, provocado, principalmente, pelo atraso dos contratos, os preços nas compras públicas são outro desafio. E o próprio Carlos Gadelha reconheceu o problema ao JOTA: “Atualmente, um mesmo produto pode ter vários preços diferentes: além do estabelecido na parceria de desenvolvimento produtivo, há o preço dos pregões. Ninguém consegue trabalhar sem ter uma garantia”.
Com essa instabilidade, fica mais difícil o BNDES (um dos principais financiadores das PDPs) investir num projeto estratégico cuja empresa a ser financiada pode levar entre 5 e 10 anos para absorver tecnologia. Pelas contas do secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde, os investimentos represados no setor chegam a R$ 30 bilhões.
Gadelha lembra, no entanto, das vacinas de Covid-19 produzidas na Fiocruz e no Instituto Butantan, para mostrar o quanto as iniciativas são importantes. “Ambas foram feitas em plataformas tecnológicas trazidas por PDPs. Na Fiocruz, foram as parcerias para biofármacos. No caso do Butantan, parceria para produção de vacina contra gripe. Ninguém pode dizer que é impossível ou que que não é importante produzir no país. Na nossa conta tem 200 mil vidas salvas.”
Artur Roberto Couto, presidente da Associação dos Laboratórios Oficiais do Brasil (Alfob), além de vice-diretor de Gestão e Mercado de Bio-Manguinhos/Fiocruz, concorda que a “retomada de um ambiente de confiança e estabilidade” é fundamental para levar adiante os planos do Geceis. No entanto, ele também cita a isonomia tributária, tarifária e regulatória em relação ao mercado internacional como desafio. “É muito importante a reforma tributária, pois o medicamento consumido no Brasil é o mais tarifado no mundo, seja importado ou produzido aqui”, concorda Henrique Tada, presidente da Alanac.
“Outro ponto é o encurtamento dos prazos para a obtenção de registros e patentes, que se traduz em aumento da competitividade do Complexo da Saúde, assim como a discussão sobre as demandas reais dos itens de aquisição por parte do Ministério da Saúde”, acrescenta Couto.
O presidente da Alfob diz que a entidade conduz a discussão sobre um Marco Legal que estabelece, por um lado, compromissos sobre políticas de compliance, qualidade, prazos de entrega e, por outro, estabilidade institucional que permita horizontes de planejamento de médio e longo prazos.
Ele ressalta que não se trata apenas de um horizonte econômico, mas de garantia do direito assistencial e farmacêutico à população. “Há um quadro muito preocupante, por exemplo, em relação às Doenças Negligenciadas e Drogas Órfãs [que tratam doenças raras e não são economicamente viáveis], além de crises cíclicas de desabastecimento que atingem as redes regionais de atenção à saúde.”
Segundo o presidente da Alfob, o “fortalecimento do Complexo da Saúde representa a possibilidade de que o Brasil entrelace o desenvolvimento social e humanitário ao desenvolvimento econômico, científico e tecnológico”, pois assegura o direito à saúde, com acesso a terapias mais avançadas, enquanto gera emprego e renda, além de reter divisas internacionais ao equilibrar a balança comercial e ampliar as cadeias produtivas que se movimentam a partir do fornecimento dos insumos estratégicos para o SUS.
Prioridades e oportunidades
Para Norberto Prestes, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), o Brasil deve apostar, prioritariamente, no investimento em tecnologia para desenvolver fármacos nacionais. “Não adianta só investir para fazer cópia de medicamento. Não valorizamos o desenvolvimento de novas moléculas, apostamos tudo na indústria de genéricos. Assim, viramos bons montadores de medicamentos, mas não desenvolvemos os nossos próprios”, lamenta. Segundo ele, algumas moléculas podem ser produzidas nacionalmente 30% mais baratas do que são compradas lá fora.
Fernando Silveira Filho, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Tecnologia para a Saúde (Abimed), acredita que o país tem uma estrutura estabelecida para retomar o parque industrial dos anos 1980, mas precisa se atualizar, porque, evidentemente, o salto tecnológico de lá para cá foi enorme. “O desenvolvimento do complexo industrial da saúde deve ser uma visão de Estado e não uma visão de governo. Não é à toa que encarar a saúde como motor da economia mundial está dentro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2030”, diz.
Com um mercado interno com o tamanho e a capilaridade do SUS (Sistema Único de Saúde), as fontes ouvidas pelo JOTA argumentam que a saúde é o setor mais vantajoso para a alocação de recursos. “O retorno é direto, com garantia de medicamentos a um preço acessível e desenvolvimento de toda a área. Trata-se de olhar a saúde como setor estratégico na economia. É sobre resgatar a proposta de industrialização do Brasil, a produção de IFA e desenvolvimento da tecnologia e começar a ser um expoente pelo menos no desenvolvimento de novas drogas”, explica Norberto Prestes.
Outro ponto de consenso entre todos aqueles ouvidos pela reportagem é que a pauta do complexo industrial da saúde deve ser politicamente intocável, independentemente das vontades do governo de turno. Com o avanço do envelhecimento da população e a ameaça de futuras pandemias no horizonte, as fontes argumentam que o Ministério da Saúde deve definir quais são os IFAs prioritários para o país e, assim, resolver questões críticas.
“Também é importante pensar em bloco com a América Latina e avaliar o horizonte tecnológico: o que virá daqui a 10 anos? Como o Brasil tem um super gargalo nesse sentido, qualquer aposta que se fizer estará valendo. E chegamos num ponto em que, como se diz popularmente, ou vai ou racha”, conclui Prestes.
Fonte: Jota Pro Saúde/ NK Consultores.
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p class=”jota-article__byline” style=”text-align: justify;”>JOANA OLIVEIRA – Repórter freelancer. Foi editora da revista Claudia e repórter do El País.
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