Priscila Torres estava acostumada a lidar com a dor dos outros. Auxiliar de enfermagem de três hospitais, ela passava os dias cuidando de pessoas em estado grave. Aos 26 anos, porém, trocou de lado. De profissional da área da saúde, virou paciente. A jovem descobriu que tinha artrite reumatoide, um diagnóstico que, embora associado apenas a idosos, pode, na realidade, afetar todas as faixas etárias. A vida de Priscila sofreu um revés. “De repente, a dor te impede de escovar os dentes, pentear o cabelo, sair de casa. No dia em que decidi ir ao pronto-socorro, precisei de ajuda para vestir a roupa”, relata. A influência emocional da doença será abordada na segunda reportagem sobre artrite reumatoide.
Para os portadores da doença crônica e degenerativa, as atividades corriqueiras podem se tornar um martírio. Não à toa, estudos indicam que a qualidade de vida de pessoas com artrite reumatoide é inferior à da população em geral, mesmo nos estágios mais precoces da enfermidade. Há dois anos, pesquisadores do Instituto de Ciências de Saúde da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) compararam questões como percepção de dor, vitalidade, saúde mental e aspectos emocionais entre indivíduos saudáveis e aqueles que têm a enfermidade. O resultado apontou diferenças significativas em todos os parâmetros investigados.
Enquanto 40% dos pacientes disseram que seu estado de saúde em geral era “um pouco pior” ou “muito pior” que no ano anterior, esse percentual foi de apenas 3,3% entre os demais participantes do estudo. A pesquisa detectou um índice alto de depressão nas pessoas diagnosticadas com artrite reumatoide: 63,33% delas apresentavam algum grau do problema, comparado a 13,34% do grupo de controle. “Os sintomas depressivos podem aparecer em decorrência das limitações físicas ocasionadas pelas deformidades ou do estresse de viver com uma doença crônica, devido à sua natureza potencialmente debilitante”, observa Cristiane Vitaliano Graminha, professora do Departamento de Fisioterapia Aplicada da UFTM e principal autora do estudo, publicado na revista Fisioterapia e Pesquisa.
Foi o que ocorreu com Priscila, hoje com 34 anos. À época do diagnóstico, ela tinha uma rotina intensa: trabalhava, cursava faculdade de enfermagem e cuidava do filho Tiago, que tinha 4 anos. “É um peso muito grande. Você sente que seu destino foi ameaçado, que está predestinada a sofrer e que não terá mais possibilidade de trabalhar, ser feliz, participar da vida. É a mensagem que chega com esse diagnóstico”, diz Priscila. “Achava que ia morrer. Fiquei muito depressiva, olhava para o meu filho e imaginava que, dali a 10 anos, ele estaria me empurrando em uma cadeira de rodas”, recorda a auxiliar de enfermagem.
Cristiane Vitalino Graminha afirma que, além do componente emocional, é possível que a depressão esteja associada à etiologia da doença. “Há evidências que apontam para influências biológicas na causa da depressão nesses indivíduos”, diz. De acordo com ela, alguns autores sugerem que a depressão é uma manifestação da própria disfunção imunológica característica da artrite reumatoide. Essa é uma enfermidade autoimune, quando as células de defesa acreditam que estruturas do corpo são agentes externos e passam a combatê-las. “A literatura aponta ainda que o uso de corticoides, um dos medicamentos administrados no tratamento, pode desencadear distúrbios psiquiátricos, entre eles, a depressão”, diz.
Diagnóstico estratégico
Em uma avaliação com 99 pacientes, pesquisadores da Faculdade de Medicina de Marília e do Hospital das Clínicas da instituição detectaram que a dor e o comprometimento funcional são as principais queixas dessas pessoas em relação ao impacto na qualidade de vida. “Os pacientes com artrite reumatoide apresentam deficiência funcional importante, e aproximadamente 50% deles ficam impossibilitados de trabalhar por volta de 10 anos a partir do início da doença”, aponta a enfermeira Suzana Roma, autora do artigo publicado na Revista Brasileira de Reumatologia. Quanto mais avançada a enfermidade, mais baixa a qualidade de vida observada. Contudo, a pesquisadora lembra que o tratamento precoce e adequado reduz as consequências negativas. “A doença pode ser bem controlada e ter seus sintomas minimizados quando se atinge a remissão. Com isso, os pacientes experimentam uma melhora significativa da qualidade de vida”, afirma.
Passada quase uma década desde o diagnóstico da artrite reumatoide, a auxiliar de enfermagem Priscila Torres diz que, “se soubesse como seria de verdade, teria chorado menos”. Hoje, ela tem uma vida normal. A identificação da doença logo no início e a facilidade de acesso ao tratamento evitou que a moradora de São Paulo sofresse algum tipo de sequela. O pior pesadelo da jovem – ser empurrada pelo filho em uma cadeira de rodas – não se concretizou. Sua experiência é compartilhada com outros pacientes no blog AR (www.artritereumatoide.blog.br) e no grupo EncontrAR, que oferece apoio aos pacientes de artrite reumatoide. “É uma doença séria, mas você pode trabalhar, estudar, viver normalmente. São essas experiências que queremos compartilhar”, diz.
Não se vitimizar e superar os limites é a receita que a psicóloga Juliana Cavalin De Amo Freitas, de 31, segue à risca para enfrentar a doença. “No começo, é muito difícil. Mas, quando você aceita e entende as limitações, vai se adaptando. Se estou com dor na mão e preciso pegar alguma coisa, pego com o pé. Meu cotovelo não estica, tenho deformidade em um dedo… Mas corro atrás de tudo que posso fazer. Quando não dá, paciência. Temos que ter humildade para reconhecer e pedir ajuda quando precisar”, diz ela, que possui duas próteses nos joelhos.
Juliana foi diagnosticada aos 10 anos com artrite idiopática juvenil (AIJ) poliarticular, quando mais de quatro articulações são afetadas. A enfermidade não entrou em remissão e ainda hoje ela faz tratamento. Na idade adulta, a AIJ comporta-se da mesma forma que a artrite reumatoide inicial, tanto do ponto de vista clínico quanto imunológico. O metotrexato, medicamento modificador da evolução da doença mais utilizado pelos pacientes, provoca efeitos colaterais fortes em Juliana, que eventualmente recorre ao corticoide para diminuir as dores. Contudo, ela não se deixa abalar. Trabalha normalmente e, ainda este ano, pretende engravidar do primeiro filho. “Estou me preparando física e psicologicamente”, garante. A artrite reumatoide não tem impacto negativo sobre a fertilidade, mas, como alguns medicamentos podem prejudicar o feto, o reumatologista precisa estar ciente dos planos de gestação.
Vida sexual comprometida
Assunto pouco abordado pelos médicos, a artrite reumatoide também pode ter um impacto negativo na vida sexual dos pacientes. “Assim como nas outras atividades do dia a dia, a doença causa dificuldades para a realização de atividades sexuais, seja pela dor articular, seja pela redução da mobilidade. Isso é um problema que comumente não é investigado pela equipe, pois geralmente é desconfortável para o paciente abordar as questões de sua sexualidade”, observa Pedro Henrique de Almeida, professor-assistente do curso de terapia ocupacional da Universidade de Brasília (UnB).
A reumatologista Licia Mota, responsável pelo Ambulatório de Artrite Reumatoide Inicial do Hospital Universitário de Brasília (HUB), conta que, certa vez, três pacientes comentaram que estavam com a vida sexual muito comprometida e questionaram se isso poderia estar relacionado à doença. “Nas reuniões com eles, esse tema é tabu. Ficam envergonhados, e os médicos, mais ainda. Os profissionais não têm preparo sobre um domínio importantíssimo da vida”, constata. Essa percepção motivou pesquisadores vinculados ao ambulatório a desenvolver alguns estudos sobre o assunto. Uma das pesquisas contou com a participação de 68 pacientes. A prevalência de disfunção sexual foi de 79,6%, bastante superior à relatada na literatura em mulheres saudáveis, que é de até 40%.
No ano passado, os pesquisadores fizeram outra investigação com os pacientes e profissionais do ambulatório. “Queríamos justamente iniciar a conversa: o profissional de saúde precisa estar atento e disposto a abordar questões relacionadas a atividades sexuais dos pacientes com artrite reumatoide, e o paciente também deve entender que muitas das dificuldades encontradas podem ser superadas com pequenas modificações”, conta Pedro Henrique de Almeida. Ele diz que alguns medicamentos, por exemplo, podem diminuir a lubrificação vaginal ou levar à falta de libido. Além disso, a dor e a rigidez articulares causadas pela artrite reumatoide dificultam ou até impedem o ato sexual.
Nesses casos, conversar com o médico sobre a possibilidade de troca da medicação ou de alteração do horário de ingestão do remédio são formas de facilitar a atividade sexual. “O paciente pode usar várias outras estratégias: reservar mais tempo para a atividade sexual; tomar um banho morno antes do sexo para aliviar a dor e aumentar a mobilidade articular; usar lubrificantes à base de água; modificar posições sexuais adotadas, evitando permanecer em uma postura que cause dor nas articulações, procurando apoios para distribuir o peso do corpo (utilizando a cama, almofadas, travesseiros) e evitar fadiga durante o ato”, ensina o terapeuta. O resultado dessa pesquisa está no artigo “Como o reumatologista pode orientar o paciente com artrite reumatoide sobre função sexual”, publicado na Revista Brasileira de Reumatologia.
Por: Paloma Oliveto – Correio Brasiliense
Arte Digital: Valdo Virgo
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