O corpo de quem sofre com doenças reumáticas e musculoesqueléticas carrega sinais visíveis e invisíveis. São mais de 200 os males que a reumatologia reúne. A luta, muitas vezes, é para barrar a ação do próprio organismo, que ataca as articulações, causando inflamações, infecções ou deterioração gradual das juntas, músculos e ossos.
Sem o tratamento adequado, a dor pode incapacitar para o trabalho e as tarefas diárias mais simples, e os reflexos vão além do comprometimento físico.
Estudo apresentado no Congresso Anual de Reumatologia Europeu (Eular) 2018 mostrou a correlação entre as primeiras atividades da artrite reumatoide e taxas de depressão e de ansiedade. O levantamento é do pesquisador da Universidade de Glasgow, na Escócia, George Fragoulis e incluiu 848 pacientes.
A conexão entre depressão e doenças reumáticas não é novidade. O que tem mudado nos últimos anos é a compreensão de que possa haver uma inter-relação ainda mais profunda, conforme explica o professor Ricardo Xavier, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Está se observando que a depressão e a ansiedade nos pacientes com doença inflamatória articular estão correlacionadas — além das variáveis socioculturais — com os marcadores de intensidade dessa inflamação, como a proteína C reativa. Isso indica que possa haver uma relação direta de inflamação e alteração do funcionamento do sistema nervoso central”, detalha o reumatologista.
Nesse contexto, a visão holística do paciente se torna ainda mais relevante. Pedro Almeida, professor do curso de terapia ocupacional da Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília (UnB), supervisiona estudantes da graduação no trabalho multiprofissional em parceria com o ambulatório de doenças reumáticas do Hospital Universitário de Brasília (HUB).
O objetivo é auxiliar os pacientes a vencer comprometimentos nas atividades diárias de autocuidado, causados pela dor articular, fadiga e inchaço decorrentes das doenças.
“Há sintomas físicos e também emocionais, no caso desses pacientes, geralmente relacionados à perda de autoeficácia, que é a capacidade de saber em quanto tempo ele consegue ficar pronto para o trabalho, por exemplo”, afirma o docente.
A partir da constatação das necessidades de cada um dos pacientes, o foco da atuação na terapia ocupacional são as modificações técnicas de conservação de energia e proteção articular, que consistem em adaptar instrumentos para a realização de tarefas diárias e ensinar maneiras diferentes de usar o corpo.
“Buscamos potencializar a capacidade do paciente de tomar as rédeas da doença”, resume Pedro Almeida. O grupo agora trabalha no desenvolvimento de três cartilhas educativas sobre doenças reumáticas, que estão em processo de validação: sobre atividades sexuais, de vida diária e produtivas.
Avanços
Descobertas como a da jovem estudante holandesa de medicina Pomme Poppelaars, também apresentada no Eular, confirmam constatações cada vez mais frequentes nos consultórios.
Sob a orientação do professor Maarten Boers, na VU University Medical Center, ela rastreou, um a um, os dados de 154 dos 155 pacientes do país diagnosticados precocemente com artrite reumatoide.
As informações clínicas do mesmo grupo são acompanhadas por diferentes pesquisas há 23 anos. A conclusão foi a de que houve normalização das taxas de mortalidade, em níveis compatíveis ao da população em geral.
Na avaliação de Boers, o tratamento precoce e constante da doença pode explicar os resultados e representa um sinal de que, além da melhora da qualidade de vida, é possível ampliar a longevidade dos pacientes.
“Quando eu comecei, como um jovem residente nessa área, a sala de espera do meu consultório era repleta de pacientes em cadeiras de rodas. Agora, vejo uma cadeira de rodas a cada três meses. Todos os meus outros pacientes entram e saem andando”, relata o professor.
Entenda
Confira algumas das principais doenças reumáticas
Artrite reumatoide
Doença crônica inflamatória que afeta as articulações, causando dor e incapacidade. É mais comum em pessoas mais velhas, mas pode acometer jovens, adolescentes e até crianças. Afeta mulheres mais frequentemente do que homens.
Espondilite anquilosante
Causa inflamação principalmente na coluna vertebral e nas articulações sacroilíacas. Manifesta-se mais em homens e, além de causar dores contínuas nas costas, pode atingir outras juntas, olhos, coração, pulmões, medula espinhal e rins.
Lúpus
Doença inflamatória crônica de origem autoimune. Pode ser cutânea, que se manifesta com manchas na pele; ou sistêmica, quando um ou mais órgãos internos são acometidos. No último caso, os sintomas gerais são febre, emagrecimento, perda de apetite, fraqueza e desânimo.
Artrose
Também chamada de osteoartrite, caracteriza-se pelo desgaste da cartilagem articular e por alterações ósseas. É a doença reumática mais comum, representando cerca de 30% a 40% das consultas em ambulatórios de reumatologia.
Gota
Doença causada por taxas de ácido úrico no sangue em níveis acima do normal (hiperuricemia). A deposição de cristais nos tecidos, principalmente nas articulações, causa inflamação, dor e inchaço. A maioria dos portadores são homens adultos.
Fibromialgia
Doença crônica que causa dor muscular, distúrbios do sono, dor de cabeça e formigamento e dormência nas extremidades do corpo. Pode ser um quadro isolado ou estar em associação a outras patologias reumáticas.
Fontes: Sociedade Brasileira de Reumatologia e Eular
Entrevista
Licia Mota, coordenadora da Comissão de Artrite Reumatoide da Sociedade Brasileira de Reumatologia
Diagnóstico é principal desafio
As doenças reumáticas, em especial a artrite reumatoide, precisam de tratamento ágil, nos primeiros meses de sintomas, e de atenção multiprofissional. Esses dois elementos estão entre as principais conclusões apresentadas em painéis durante o Congresso Internacional da Liga Europeia Contra o Reumatismo (Eular, na sigla em inglês) e corroborados pelas pesquisas no Brasil. Responsável pelo Ambulatório de Artrite Reumatoide Inicial do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e coordenadora da Comissão de Artrite Reumatoide da Sociedade Brasileira de Reumatologia, a médica reumatologista Licia Mota destaca a importância de se tratar com eficiência a doença que acomete entre 0,5% e 1% da população mundial e causa grande impacto socioeconômico. No Brasil, todo o tratamento é custeado pela rede pública, o que coloca o país em posição privilegiada em relação a outras nações, mas o diagnóstico precoce ainda é um desafio.
Quais são as consequências das doenças reumáticas. É importante ter uma visão holística do paciente no tratamento?
Com certeza. É muito importante essa questão de como a artrite reumatoide e outras doenças afetam a qualidade de vida do paciente, sobretudo induzindo fadiga ou transtorno do humor. Nós sempre vimos a depressão, por exemplo, como uma consequência da artrite: o paciente tem dor, irritação, incapacidade física, o que leva à depressão. Mas, nos últimos anos, tem sido avaliada a possibilidade contrária, de que, na verdade, a depressão também possa causar artrite. Foram apresentados dados (no Eular) de um estudo que acompanhou pacientes com depressão que desenvolveram a doença, então é possível que a via inversa também seja verdadeira.
Por que esse achado é importante?
O importante disso é mostrar que é essencial manejar a depressão em paciente com artrite, porque ela piora o prognóstico da doença; piora o prognóstico cardiovascular, pois o paciente morre mais de infarto, por exemplo; e aumenta a mortalidade global por todas as causas, inclusive suicídio. Ou seja, a depressão é uma comorbidade importantíssima na artrite, mas o contrário também é importante: olhar para o paciente depressivo como quem tem risco de desenvolver doença autoimune.
Qual a relevância do tratamento precoce?
O primeiro ano – de sintomas, e não de diagnóstico – , já era considerado um período crítico para se ter a resposta adequada, uma janela de oportunidade. Nos últimos dois ou três anos, esse intervalo tem sido reduzido para os primeiros seis meses. Isso é um problema imenso no Brasil, porque o paciente não chega ao especialista nesse período. O paciente brasileiro tem uma jornada muito longa a partir do início dos sintomas. Há automedicação, porque temos anti-inflamatório e corticoide de venda livre, o que protela o diagnóstico. Ele muitas vezes vai a uma unidade básica de saúde e é até encaminhado a um especialista, mas leva muito tempo para de fato chegar ao reumatologista. Quando chega para nós, muitas vezes, já perdeu a janela de oportunidade de tratamento. No Brasil, temos talvez uma das melhores situações de tratamento do mundo, com acesso amplo pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O entrave para melhorarmos a vida dos pacientes brasileiros é fazer com que eles cheguem precocemente ao reumatologista. Eles não sabem qual especialista devem procurar, mesmo na rede privada, não apenas na pública.
O objetivo é alcançar a remissão?
A meta é a melhor resposta possível, pensando em remissão – ainda não falamos em cura para a artrite reumatoide -, que é o desaparecimento dos sintomas. Se o paciente é tratado precocemente, de forma correta, intensiva – o chamado tratamento dirigido para um alvo, ou treat to target, a chance de ele alcançar remissão, tanto clínica quanto radiográfica, é muito maior. Existe inclusive a possibilidade de ele atingir remissão livre de medicação, uma situação próxima à cura.
Outros profissionais também devem participar do tratamento?
Sim. Idealmente, o tratamento deve ser multiprofissional. Você deve ter o educador físico, o fisioterapauta, o terapeuta ocupacional, o psicólogo e, eventualmente, um nutricionista. Mas nem sempre conseguimos isso no serviço público. Na UnB, temos uma parceria muito produtiva com a terapia ocupacional.
Pesquisa de vacinação contra a febre amarela
Pesquisadores da UnB acompanham, há 15 anos, a evolução clínica, de marcadores laboratoriais e radiográficos em pacientes diagnosticados com artrite reumatoide com menos de um ano de sintomas. A chamada Coorte Brasília resultou, apenas este ano, em 17 trabalhos que serão apresentados no 35º Congresso Brasileiro de Reumatologia, no Rio de Janeiro, em setembro. Uma das principais descobertas está a poucos passos de ser publicada, resultado de tese de doutorado feita na linha de pesquisa sobre vacinação contra a febre amarela. A universidade acompanha, desde 2009, um grupo de pacientes com artrite reumatoide imunossuprimidos que receberam a imunização. “Essa vacina é contraindicada a esses pacientes, mas, naquele ano, tivemos em torno de 70 que se vacinaram sem saber, sem perguntar ao médico, o que chamamos de vacinação inadvertida”, afirma Licia Mota. Entre os pacientes acompanhados, só houve eventos adversos menores, similares aos que ocorrem na população em geral. O nível de imunização, no entanto, caiu depois de 10 anos. Os dados podem ajudar a esclarecer como deve ser manejada a vacinação nessas pessoas. “Quando o paciente precisa viajar para esses locais, você pode orientá-lo a não ir. Mas nós, por exemplo, em Brasília, estamos em uma área de risco, o paciente é exposto e precisamos protegê-lo”, finaliza Licia.
Desafios cotidianos
Os primeiros sinais da artrite reumatoide surgiram quando Fabiana Pereira do Nascimento tinha 26 anos, pouco antes da gravidez do segundo filho. Com dor nos pés, ela se automedicou durante três dias antes de ir ao posto de saúde. De lá, foi encaminhada a um especialista, que confirmou o diagnóstico.
As dores voltaram aterradoras depois que João Wesley, hoje com 5 anos, nasceu. Os medicamentos introduzidos nos primeiros meses de sinais da doença impediram que ela deixasse rastros aparentes.
Até hoje, no entanto, ela luta para encontrar a dose correta de medicação, que garanta uma vida mais confortável. As dores nos pés, tornozelos, joelho, mãos e coluna a impedem de continuar o trabalho de feirante.
A primogênita, Júlia, 10, está sempre ao lado da mãe. Os quatro vivem com a renda do marido, Wesley, 33, vigilante. Há dias em que a artrite, aliada à fibromialgia, impede a realização das tarefas mais banais, como escovar os dentes e amarrar o cabelo.
“Muitas pessoas, principalmente no começo, acham que é frescura. Você percebe, vai escutando comentários. Mas, em casa, o meu marido me entende e me ajuda.”
Francisca Martins da Silva, 55, descobriu a doença ainda mais cedo. A mãe dela percebeu que havia algo de errado quando a bebê de 10 meses, que arriscava os primeiros passos, parou de andar.
O inchaço e o choro constantes ligaram o sinal de alerta. À época, o tratamento ainda era precário. Passou os primeiros 15 anos de vida tomando injeções de antibiótico para amenizar os sintomas da artrite idiopática juvenil.
Hoje, depois de seis cirurgias para ajustar desgastes nas articulações, ela carrega algumas marcas no corpo, mas celebra com empolgação as conquistas que acumulou no caminho. Mãe de Lady Cecília, 33, e avó de Ana Luiza, 3, é formada em letras e trabalha com venda de produtos de beleza.
Depois do último procedimento cirúrgico, assustou-se com a recomendação do médico: estava autorizada a fazer musculação. Agora, a academia e as aulas de pilates funcionam como uma terapia.
“Por meio das palestras, eu descobri que não há cura para a artrite reumatoide, mas você pode conviver muito bem com ela. Coloquei isso na minha cabeça, tanto é que, hoje, ela pouco me incomoda”, destaca.
Amparo
Ela é uma das fundadoras da Associação Brasiliense de Pacientes Reumáticos (Abrapar), onde a troca experiências contribui para enfrentar os males. Sebastião Ronaldo Ferreira, 55 anos, é um dos membros.
Sente dores incessantes, mesmo com os medicamentos, no quadril, na lombar e nas articulações, consequência da espondilite anquilosante.
Ele apresentou sintomas por volta dos 24 anos, com as primeiras fisgadas. Só quando o mal atingiu os olhos, numa uveíte, o diagnóstico foi definitivo: doença autoimune, crônica e degenerativa.
“Quando você recebe esse diagnóstico fica triste”, conta. Depois disso, buscou apoio na Abrapar. “Convivendo com outras pessoas, vamos aprendendo e superando.”
Entidades como essa estão espalhadas pelo país todo e criam uma rede de amparo. “Proporcionamos acolhimento aos pacientes associados. Eles recebem o suporte psicológico, terapêutico e outros tratamentos multiprofissionais que complementam o clínico”, afirma Marta Azevedo, presidente do Grupo de Apoio aos Pacientes Reumáticos do Ceará (Garce).
É o tipo de apoio que o programa Youth-R-Coach também ofereceu a pacientes com doenças reumáticas na Holanda. Com foco em adolescentes e jovens entre 15 e 25 anos, a iniciativa reuniu dois grupos de sete pessoas, em 2016 e em 2017, que desenvolveram uma série de tarefas para refletir sobre os desafios impostos, com o auxílio de mentores.
O arremate foi a publicação, este ano, de 14 livros com relatos de cada um deles. “É o resultado mais importante, pois essas obras contam histórias de jovens que enfrentam desafios diários com suas doenças, e isso pode servir de apoio para outras pessoas”, explica Linda van NieuwKoop, conselheira e mentora no Youth-R-Coach, projeto do Centrum Chronisch Ziek en Werk.
A jornalista viajou a convite da AbbVie
Batalha pela vida
Além da artrite, o lúpus é outra doença reumática que acomete principalmente mulheres. Engko Nukayalu, 21 anos, passou mal pela primeira vez em 2017. A fraqueza e a tontura foram diagnosticadas inicialmente como uma anemia falciforme.
Indígena, ela precisava percorrer vários quilômetros todas as semanas para chegar até o hospital, em Sinope (MT), e tratar os sintomas. O quadro se agravou e a jovem passou 23 dias em coma.
A descoberta do lúpus só ocorreu em janeiro deste ano, quando buscou acompanhamento especializado no HUB. O marido, Alerson Romão, 27, a acompanhou, apreensivo, durante todo o processo.
“Tem vezes que me sinto bem, bem mesmo, feliz. Outras vezes, fico triste, pensando se vou melhorar e parar de tomar os remédios”, conta a jovem, que agora mora na cidade com o marido.
Este mês, eles completaram um ano de casados e, depois de passar três meses no Distrito Federal para o tratamento, começam a fazer planos para o futuro. “Hoje, ela está 100%. Falo isso porque é uma doença que a derrubou totalmente”, diz Alerson.
Fonte: Mariana Niederauer – Correio Braziliense
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