O Superior Tribunal de Justiça deliberará, nesta quarta-feira (23/2), se é taxativo ou exemplificativo o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Com outras palavras, se definirá se as operadoras dos planos de saúde devem ou não cobrir procedimentos não incluídos na relação da ANS.
O julgamento se passa na 2ª Seção do Tribunal, no exame de dois embargos de divergência (EREsp 1.886.929 e EREsp 1.889.704). Iniciado com voto do Ministro Luis Felipe Salomão em 16/9/2021, espera-se definição para hoje, a partir do voto da ministra Fátima Nancy Andrighi. Em seguida votam os demais ministros do colegiado (que abrange as 3ª e 4ª Turmas do Tribunal).
Não se trata de questão de simples solução. E, ao contrário do que se tem propagado, o resultado do julgamento não será a tomada por uma ou outra das opções.
O ministro Luis Felipe Salomão, em seu voto, defendeu a taxatividade do rol da ANS. Ele próprio, no entanto, fez ressalvas, afirmando haver “hipóteses excepcionais em que seria possível obrigar uma operadora a cobrir procedimentos não previstos expressamente pela ANS, como terapias que têm recomendação expressa do Conselho Federal de Medicina e possuem comprovada eficiência para tratamentos específicos”. Considerou, ainda, “a adoção de exceções nos casos de medicamentos relacionados ao tratamento do câncer e de prescrição off label — quando o remédio é usado para um tratamento não previsto na bula”, consoante informações divulgadas na página do Superior Tribunal de Justiça.
A posição apresentada pelo ministro Salomão, portanto, não é no sentido de uma taxatividade absoluta. Afinal, ele admite que outros tratamentos haverão de ser cobertos pela operadora de plano de saúde, ainda que em caráter pontual. O ministro tem manifestado essa opinião em outros julgados. Por exemplo, no julgamento do recurso especial pela 4ª Turma no começo do ano de 2020, o ministro deixou claro: “por óbvio, sob pena de violação do próprio princípio do acesso à justiça e diante do risco do estabelecimento ilegal de presunção absoluta (juris et de jure) de higidez dos atos da Administração Pública, não se está a dizer que não possam existir situações pontuais em que o Juízo — munido de informações técnicas obtidas sob o crivo do contraditório, ou mesmo se valendo de nota técnica dos Nat-jus, em decisão racionalmente fundamentada – venha determinar o fornecimento de certa cobertura que constate ser efetivamente imprescindível, com supedâneo em medicina baseada em evidência (clínica)” (REsp 1.733.013). Ou seja: o rol da ANS pode ser excepcionado, em decisão judicial adequadamente fundamentada.
Espera-se que a ministra Nancy Andrighi se manifeste em sentido diverso. Partindo de decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal sobre o poder normativo das agência regulamentadoras (como o é a ANS), a ministra já se manifestou no sentido de que “atos normativos exarados pela ANS, além de compatíveis com a Lei 9.656/1998 e a Lei 9.961/2000, dentre outras leis especiais, devem ter conformidade com a Constituição Federal de 1988 e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), não lhe cabendo inovar a ordem jurídica” (Recurso Especial 1.876.630, julgado em 2021 pela 3ª Turma). Em síntese, afirma a ministra que a ANS não tem poder normativo para restringir o direito fundamental à saúde assegurado ao consumidor pela Constituição e pelo CDC.
A ministra destaca outros pontos relevantes. Por exemplo, o consumidor não tem conhecimentos técnicos para compreender os termos utilizados pela ANS. No jargão jurídico, afirma-se que no caso se está diante de hipossuficiência técnica. O regulamento da ANS, assim, jamais poderia ser utilizado contra o consumidor, colocando sua saúde e sua vida em risco. Não bastasse, deixaria o usuário descoberto de avanços científicos, já que novos tratamentos médicos somente poderiam ser dados ao consumidor quando a ANS viesse a prevê-lo. Com isso, o consumidor acabaria sendo punido também pelo tempo. Essa, segundo pensamos, é a orientação que deve prevalecer.
Argumenta-se, contra essa opinião, quanto ao risco de se criar insegurança jurídica. Além disso, os impactos econômicos desse entendimento poderiam tornar inviável a prestação de serviços pelas operadoras de plano de saúde, pois não haveria equilíbrio entre despesas e receitas.
No entanto, é importante ter claro que, ao menos até o momento, a absoluta taxatividade do rol da ANS não está sendo levada em consideração pelo Superior Tribunal de Justiça. As manifestações acima indicadas representam os pontos de vista prevalecente nas duas Turmas que, no Superior Tribunal de Justiça, têm competência para deliberar sobre o tema: de um lado, rol exemplificativo, ou, de outro, rol taxativo como regra, que poderá ser excepcionado por decisão judicial.
De fato, aí está em jogo um desequilíbrio: de um lado, tutela-se em primeiro lugar o interesse defendido pelas operadoras de plano de saúde, já que o consumidor somente teria direito ao tratamento após a sua inclusão no rol da ANS; de outro, o direito à saúde e à vida do consumidor deve prevalecer num primeiro momento, para em seguida também com a participação da ANS se autorizar o reajuste da mensalidade do plano. Vê-se, pois, que desequilíbrio sempre haverá, mas com uma diferença: se a balança pende contra o usuário, ele pode sofrer danos irreversíveis por não receber tratamento médico, podendo até mesmo vir a morrer; mas se a balança pende em favor das operadoras de plano de saúde, pode-se, de fato, criar um desequilíbrio econômico-financeiro, o qual, no entanto, é momentâneo e reversível, já que em seguida poderá ser resolvido pela correção das mensalidades.
Esse segundo ponto de vista, pensamos nós, também pode gerar insegurança jurídica, além de conduzir à judicialização do tema, caso a caso. Afinal, diante de negativa da operadora do plano de saúde em cobrir determinado tratamento médico, o consumidor haverá de pleiteá-lo judicialmente. Trata-se, aqui, daquilo que se convencionou chamar de “judicialização da saúde”.
Espera-se que o julgamento se finalize em sessão que será realizada nesta quarta (23/2). No entanto, alguém, entre ministras e ministros que compõem o colegiado, poderá também pedir vistas. Nesse caso, a definição sobre a controvérsia ficará adiada para sessão futura.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2022, 11h40
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