INTRODUÇÃO
No Brasil, pensar outros caminhos para garantir a saúde da população significou pensar a redemocratização do país e a constituição de um sistema de saúde inclusivo. Dessa forma, o Sistema Único de Saúde (SUS), com sua formulação e legislação, é considerado um dos sistemas de saúde mais inclusivos do mundo. São princípios do SUS: universalidade; integralidade; equidade; descentralização; regionalização, hierarquização e participação social (BRASIL, 1990). A consolidação do SUS é uma construção constante. Acompanhar o desenvolvimento de tecnologias e avaliar o momento de sua introdução são formas de manter ou melhorar a sustentabilidade do SUS.
O artigo consiste em uma reflexão acerca da Portaria nº 13, de 19 de abril de 2021, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde, para incorporar o implante subdérmico de etonogestrel, sendo a portaria condicionada à criação de programa específico para prevenção da gravidez não planejada em mulheres em idade fértil que sejam ou estejam: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos são direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais e documentos internacionais. Os direitos, a saúde sexual e a saúde reprodutiva são conceitos desenvolvidos recentemente e representam uma conquista histórica, fruto da luta pela cidadania e pelos direitos humanos. Mas esse é um tema que ainda suscita muito debate e reflexão.
Um dos pontos polêmicos da portaria em questão diz respeito aos princípios da universalidade e da integralidade no SUS. O artigo parte da contextualização do direito à saúde e, em seguida, discute os direitos sexuais e os direitos reprodutivos. No item seguinte é apresentado um breve histórico da incorporação de tecnologias no SUS, depois é apresentada e discutida a portaria SCTIE/MS nº 13 e, por último, as considerações finais sobre a implementação da portaria.
DIREITO À SAÚDE
A saúde é um dos principais fatores considerados quando se aborda a questão da qualidade de vida. Em 1946, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como um estado completo de bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade.
A saúde consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, no artigo XXV, que define que todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis. O equilíbrio saúde-doença é determinado por uma multiplicidade de fatores de origem social, econômica, cultural, ambiental e biológica/genética. A maior parte da carga das doenças, bem como as iniquidades em saúde, acontece por conta das condições em que as pessoas nascem, vivem, trabalham e envelhecem. Apesar disso, nem sempre esses fatores são considerados na formulação de políticas relacionadas com a saúde.
No contexto brasileiro, o direito à saúde foi uma conquista do movimento da Reforma Sanitária, apresentado e debatido na 8ª Conferência Nacional de Saúde por cerca de 4.000 participantes, em 1986, com forte atuação das mulheres. Essa conferência aprovou as diretrizes que serviram de base para a criação do Sistema Único de Saúde
(SUS).
Dessa forma, a Constituição Federal de 88, considera a saúde como um direito social (art. 6º). Está incluída no título – Da Ordem Social –, sendo direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196). Posteriormente, em 1990, foi sancionada legislação instituindo o Sistema Único de Saúde – SUS (lei 8.080/1990).
O SUS é um dos maiores sistemas de saúde do mundo e contribui para a melhoria da vida e da saúde das brasileiras e dos brasileiros, principalmente das mulheres que são as principais usuárias do SUS.
A Constituição Federal/88 incorporou o planejamento familiar como livre decisão do casal, cabendo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o seu exercício, vedando qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (art. 226, parágrafo 7o), como regulamentado em lei (Lei 9.263/1996). Essa lei define o planejamento familiar como um conjunto de ações de regulação da fecundidade, que garanta direitos de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Destaca ainda como ações básicas a serem garantidas pelo SUS: assistência à concepção e contracepção; atendimento pré-natal; assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; controle de doenças sexualmente transmissíveis; controle e prevenção do câncer cérvico-uterino, do câncer de mama e do câncer de pênis; garantir o respeito à integridade física e moral de pessoas privadas de liberdade(art. 5, XLIX). E, no art. 5º, especifica a condição de maternagem das presidiárias, garantindo-lhes condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período da amamentação.
Contudo, seria ingenuidade supor que o SUS não tem desigualdades que, seja como for, persistem. A exclusão formal desapareceu, mas não a iniquidade que subsiste em decorrência de fatores como a desinformação associada aos diferenciais de escolaridade, ou ainda da deformação em determinadas políticas públicas, em algumas das quais ainda estão presentes os privilégios e a discriminação (PIOLA, 2009; NUNES et al., 2001 apud BARROS et al.; 2016).
Apesar disso, é cada vez mais presente no pensamento sanitário brasileiro a preocupação com a equidade. Nos relatórios das conferências nacionais de saúde de 1992, 1996 e 2000, por exemplo, a utilização do termo “equidade” ou outro termo equivalente é cada vez maior: no relatório da 9ª Conferência (1992), ele aparece quatro vezes; no da 10ª Conferência (1996), 14 vezes, e 32 vezes no da 11ª Conferência, em 2000 (PINHEIRO; WESTPHAL; AKERMAN, 2005 apud BARROS; SOUSA, 2016). Já no documento orientador para os debates da 14ª Conferência (2011), a preocupação com a equidade é o primeiro dos cinco tópicos propostos e intitula-se Avanços e desafios para a garantia do acesso e do acolhimento com qualidade e equidade (BRASIL, 2011 apud BARROS; SOUSA, 2016). E na 15ª Conferência (2015), a equidade está expressa no documento orientador, como uma das diretrizes/objetivos no primeiro eixo temático – Direito à Saúde, Garantia de Acesso e Atenção de Qualidade – (BRASIL, 2015). A 16ª Conferência também reafirma a equidade como um dos princípios do SUS, além da universalidade e integralidade, no documento orientador (BRASIL, 2018).
O Conselho Nacional de Saúde tem como princípio básico a defesa da democracia representativa e direta, e organiza sua agenda na ampliação da mobilização e da participação social em defesa do SUS e dos direitos sociais. Nesse sentido, foram realizadas até o momento 16 Conferências Nacionais de Saúde, sendo que a 16ª conferência foi realizada em 2019. Entidades ligadas à área da saúde, gestores e prestadores de serviços do setor, usuários(as) e representantes da sociedade civil organizada são exemplos de perfis dos participantes das conferências.
DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS
Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos são direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais e documentos internacionais. Os conceitos de saúde reprodutiva e direitos reprodutivos foram definidos claramente pela primeira vez em 1.994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, Egito, da qual o Brasil foi signatário das resoluções.
Saúde sexual e reprodutiva significa que os indivíduos devem ter uma vida sexual prazerosa e segura, através de informações sobre sexualidade e prevenção de DST/AIDS, garantindo-lhes a liberdade de decisão quanto a ter ou não ter filhos, além de quando e com que frequência os terão, através do acesso à informação e aos métodos contraceptivos (Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva – Cadernos de Atenção Básica nº 26).
Nas duas últimas décadas, registraram-se grandes avanços na legislação internacional e nacional sobre as dimensões da reprodução e da sexualidade como direitos humanos e de cidadania.
No Brasil, destaca-se a Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regulamenta o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelecendo em seu art. 2º:
Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole la mulher, pelo homem ou pelo casal. Parágrafo único – É proibida a utilização das ações a que se refere o caput para qualquer tipo de controle demográfico […]
Art. 9º. Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção (BRASIL, 1996).
Portanto, as instâncias gestoras do Sistema Únicode Saúde (SUS), em todos os seus níveis, estão obrigadas a garantir a atenção integral à saúde que inclua a assistência à concepção e à contracepção.
Outro marco fundamental é a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 2004, elaborada pelo Ministério da Saúde em parceria com diversos setores da sociedade, em especial com o movimento de mulheres e com os gestores do SUS. Essa política reflete o compromisso com a implementação de ações de saúde que contribuam para a garantia dos direitos humanos das mulheres e reduzam a morbimortalidade por causas preveníveis e evitáveis. Enfatiza a melhoria da atenção obstétrica, o planejamento familiar, a atenção ao abortamento inseguro e às mulheres e às adolescentes em situação de violência doméstica e sexual. Além disso, amplia as ações para grupos historicamente alijados das políticas públicas nas suas especificidades e necessidades (BRASIL, 2004b), assim como a Política Nacional dos Direitos Sexuais e dos Direitos Reprodutivos de 22 de março de 2005. Entre as diretrizes e ações propostas por essa política estão: ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis no SUS, incentivo à implementação de atividades educativas em saúde sexual e saúde reprodutiva para usuários(as) da Rede SUS; capacitação dos profissionais da Atenção Básica em saúde sexual e saúde reprodutiva; ampliação do acesso à esterilização cirúrgica voluntária (laqueadura tubária e vasectomia) no SUS; implantação e implementação de redes integradas para atenção às mulheres e aos adolescentes em situação de violência doméstica e sexual; ampliação dos serviços de referência para a realização do aborto previsto em lei e garantia de atenção humanizada e qualificada às mulheres em situação de abortamento; entre outras ações (BRASIL, 2005d).
Dessa maneira, torna-se importante propiciar o diálogo entre os sujeitos envolvidos com o cuidado sobre uma proposta educativa que não considere apenas o modelo biomédico, mas que pondere questões relativas ao gênero, à sexualidade, à autonomia e à liberdade para a construção de práticas não discriminatórias que garantam a promoção, a proteção e o exercício da sexualidade e da reprodução como um direito, pautadas na integralidade da atenção como norteadora das práticas assistenciais no âmbito da atenção à saúde (LEMOS, 2014).
Segundo o manual técnico de assistência em planejamento familiar, a atuação dos profissionais de saúde na assistência à anticoncepção envolve, necessariamente, três tipos de atividades: aconselhamento, atividades educativas e atividades clínicas. Essas atividades devem ser desenvolvidas de forma integrada, tendo sempre em vista que toda visita ao serviço de saúde é uma oportunidade para a prática de ações educativas que não devem se restringir apenas às atividades referentes à anticoncepção com foco na dupla proteção, mas sim abranger todos os aspectos da saúde integral da mulher. Deve-se, ainda, promover a interação dos membros da equipe de saúde de forma a permitir a participação dos diversos elementos nessas atividades conforme o nível de responsabilidade requerido em cada situação (BRASIL, 2002).
A escolha do método anticoncepcional pressupõe a oferta de todas as alternativas de métodos anticoncepcionais aprovadas pelo Ministério da Saúde, bem como o conhecimento de suas indicações, contraindicações e implicações de uso, garantindo à mulher, ao homem ou ao casal os elementos necessários para a opção livre e consciente do método que a eles melhor se adapte. Pressupõe também o devido acompanhamento clínico-ginecológico da usuária, independentemente do método escolhido. A decisão sobre o método anticoncepcional a ser usado deve considerar a escolha da mulher, do homem ou do casal; as características dos métodos e os fatores individuais e situacionais relacionados aos usuários do método (BRASIL, 2002).
No entanto, implementar essas políticas ainda é um grande desafio, tendo em vista a diversidade de ações e as dificuldades de acesso que esbarram em preconceitos e tabus por parte dos profissionais, o que prejudica o cuidado de pessoas em situação de rua, vivendo em presídios, em situação de prostituição, jovens, idosos e população LGBT. Essas pessoas, já tradicionalmente marginalizadas em se tratando de cuidados de saúde, ao não acessar os serviços públicos, ficam mais vulneráveis a contrair doenças sexualmente transmissíveis, a piorar sua condição de saúde em relação a patologias já instaladas e a submeter-se a práticas inseguras que podem causar sérias complicações (BRASIL, 2013).
Considerando-se o momento brasileiro de crise sanitária devido à pandemia de covid-19, bem como a crise política, econômica e social, com o aumento do desemprego, da fome, da violência e do medo aprofundaram-se as desigualdades, a incerteza da própria sobrevivência e a dificuldade de acessar os serviços de saúde. Esses fatores incidem sobre a situação de saúde de vários grupos de pessoas, tendo em vista que são determinantes sociais para a saúde. Nesse sentido, o CNS elaborou vários documentos para garantir o direito fundamental à vida e à saúde, entre os quais destacamos aqui as recomendações referentes à saúde das mulheres.
Recomendação nº 039 de 12 de maio de 2020, do Conselho Nacional de Saúde, que recomenda aos governadores estaduais e do Distrito Federal, bem como a prefeitos municipais, o estabelecimento de medidas emergenciais de proteção social e garantia dos direitos das mulheres, entre elas a manutenção de “serviços essenciais de saúde para mulheres e meninas, incluindo serviços de saúde sexual e reprodutiva, sobretudo acesso a contraceptivo e ao aborto seguro nas Unidades Básicas de Saúde e Centros de Referência em IST/AIDS”;
Recomendação nº 045, de 23 de junho DE 2020, que recomenda à Câmara dos Deputados o arquivamento do Projeto de Decreto Lei nº 271/2020, que susta a aplicação de Normas Técnicas do Ministério da Saúde referentes à saúde da mulher e dá outras providências.
O PDL tem o seguinte teor:
Art. 1° Fica sustada a aplicação da Norma Técnica do Ministério da Saúde intitulada Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes, editada em 1998, assim como a de todas as versões posteriores, ampliadas e atualizadas da mesma norma.
Art. 2º Fica sustada a aplicação da Norma Técnica do Ministério da Saúde intitulada Atenção Humanizada ao Abortamento, editada em 2005, assim como a de todas as versões posteriores, ampliadas e atualizadas da mesma norma.
Art. 3º Fica sustada a aplicação da Nota Técnica de número 16/2020, do Ministério da Saúde, cujo assunto é Acesso à saúde sexual e saúde reprodutiva no contexto da pandemia de covid, publicada em 01 de junho de 2020.
Recomendação 064 de 29 de setembro de 2020 recomenda ao Congresso Nacional a tramitação e aprovação, em regime de urgência, do Projeto de Decreto Legislativo nº 409/2020, que susta os efeitos da Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Recomendação nº 06 de 06 de abril de 2021, recomenda ao Senado Federal o arquivamento do Projeto de Lei nº 5.435/2020, que cria o Estatuto da Gestante. Esse PL não contempla políticas públicas essenciais de proteção às gestantes e ameaça direitos fundamentais, no âmbito de acordos e convenções internacionais sobre direitos humanos.
Recomendação 011 de 07 de maio de 2021 recomenda orientações ao Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde ações sobre o Programa Parto Adequado, no sentido de aprimorar a qualidade e a segurança dos serviços obstétricos ofertados em estabelecimentos de saúde privados no Brasil, em especial pela redução dos índices de cirurgias cesarianas e pela promoção do parto vaginal seguro.
Recomendação nº 015 de 06 de julho de 2021, recomenda aos poderes públicos ações referentes à inclusão das mulheres grávidas, puérperas e lactantes no Plano Nacional de Imunização contra a covid-19.
INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS
Produzir tecnologia é produzir coisas que, tanto podem ser materiais como produtos simbólicos que satisfaçam necessidades. Essa tecnologia não se refere exclusivamente a equipamentos, máquinas e instrumentos, mas também a certos saberes acumulados para a geração de produtos e para organizar as ações humanas nos processos produtivos, até mesmo em sua dimensão inter-humana. (MERHY, 2002 apud KOERICH et al., 2006).
A tecnologia em saúde se refere também à aplicação de conhecimentos com objetivo de promover a saúde, prevenir e tratar as doenças e reabilitar as pessoas. Podemos citar como exemplos de tecnologias em saúde: medicamentos, produtos para a saúde, procedimentos, sistemas organizacionais, educacionais, de informação e de suporte e os programas e protocolos assistenciais por meio dos quais a atenção e os cuidados com a saúde são prestados à população. As tecnologias em saúde estão presentes desde a prevenção de doenças até o tratamento e recuperação da saúde das pessoas. A utilização correta das tecnologias em saúde e a atualização constante das informações sobre elas são imprescindíveis para um maior benefício para os pacientes e também para os seus cuidadores e familiares (BRASIL, 2016).
Podemos dizer que tecnologias em saúde são medicamentos, equipamentos, acessórios médico-farmacêuticos e procedimentos clínicos e cirúrgicos, modelos de organização e sistemas de apoio na atenção à saúde. Além de serem utilizadas para a prevenção de riscos, a proteção de danos, o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação.
As atividades nesse campo foram iniciadas na década de 1980, principalmente no meio acadêmico.
No âmbito de governo, o projeto Reforço à Reorganização do Sistema Único de Saúde iniciou os debates de avaliação de equipamentos médico-hospitalares na rede de serviços especializados, mas não houve seguimento de política governamental explícita. A partir de 2000, foi desencadeada uma série de ações de governo para formulação de estratégias e instituições da área. Com a criação da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE), em 2003, o Ministério da Saúde iniciou a liderança de construção de uma política explícita de pesquisa em saúde no país, nela inserida o campo da avaliação de tecnologia em saúde.
Vale pontuar um resumo da linha do tempo da incorporação de tecnologia nos serviços do SUS:
2004 – Durante a 12ª Conferência Nacional de Saúde, após o reconhecimento da ATS como instrumento estratégico para subsidiar a gestão crítica de tecnologias de saúde, foi criada a Coordenação Geral de Avaliação de Tecnologias em Saúde (CGATS).
2005 – Constituição da Comissão para Elaboração de Proposta para a Política Nacional de Gestão de Tecnologias em Saúde (PNGTS). Após três anos de trabalho, a proposta foi aprovada no Conselho Nacional de Saúde e na Comissão Intergestores Tripartite e em 5 de novembro de 2009 foi publicada a portaria 2.690 que institui a PNGTS.
2006 – Criação, no âmbito da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) da Comissão de Incorporação Tecnológica em Saúde (CITEC), com a participação exclusiva de atores governamentais. Em 2008, a CITEC passou a ser gerida pela SCTIE. A importância dessa comissão reside principalmente em ter sido um importante ensaio para a futura Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), criada em 2011.
2011 – Sanção da Lei 12.401/2011, que dentre outros dispositivos, criou a CONITEC e oficializou a participação da sociedade civil, e consequentemente, dos pacientes, no processo de incorporação de tecnologias no sistema público de saúde do Brasil. O principal mecanismo de envolvimento do público na CONITEC são as consultas públicas realizadas para cada tema em avaliação.
A CONITEC é responsável por assessorar o Ministério da Saúde na incorporação, alteração ou exclusão de novas tecnologias em saúde, bem como na constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Funciona regularmente desde 2012, possui representantes da Sociedade Civil (Conselho Federal de Medicina e Conselho Nacional de Saúde) e dos Conselhos de Secretários Estaduais (CONASS) e Municipais de Saúde (CONASSEMS).
PORTARIA SCTIE/MS Nº 13, DE 19 DE ABRIL DE 2021.
A Portaria nº 13, de 19 de abril de 2021, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde, torna pública a decisão de incorporar o implante subdérmico de etonogestrel, condicionada à criação de programa específico na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
Vale lembrar que essa é a segunda solicitação de incorporação de métodos contraceptivos reversíveis de longa ação (LARC) no SUS feita pelo Ministério da Saúde à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Para a primeira solicitação, a CONITEC deu parecer desfavorável considerando o impacto orçamentário pelo tamanho da população de mulheres entre 18 e 49 anos.
O implante de etonogestrel é um anticoncepcional de 4 cm em forma de bastão que é colocado logo abaixo da pele do braço com anestesia local. Tem duração de três anos e é um método altamente eficaz, podendo ser retirado em qualquer momento, caso seja desejo da mulher (WHO FAMILY PLANNING, 2018 apud REDE FEMINISTA DE GINECOLOGISTAS E OBSTETRAS, 2021).
Nesse sentido, a incorporação de mais LARCs pelo SUS é essencial para ampliar a oferta de métodos de alta eficácia e amplia também o exercício do direito ao planejamento familiar.
Por outro lado, a portaria não contempla a perspectiva de pensar a saúde como um direito universal e integral. O princípio da universalidade do SUS determina que todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer tipo de discriminação, têm direito ao acesso às ações e serviços de saúde. A integralidade está relacionada à condição integral, e não parcial, de compreensão do ser humano. O sistema de saúde deve estar preparado para ouvir a pessoa e entendê-la dentro de seu contexto social, atendendo assim as suas demandas e necessidades.
A ‘integralidade’ como eixo prioritário de uma política de saúde, ou seja, como meio de concretizar a saúde como uma questão de cidadania, significa compreender sua operacionalização a partir de dois movimentos recíprocos a serem desenvolvidos pelos sujeitos implicados nos processos organizativos em saúde: a superação de obstáculos e a implantação de inovações no cotidiano dos serviços de saúde, nas relações entre os níveis de gestão do SUS e nas relações destes com a sociedade (PINHEIRO, 2009; p. 258).
Outra questão da Portaria nº 13 é quanto à idade da população mencionada, uma vez que há duas referências. Uma referência menciona as mulheres de 18 a 49 anos de idade e mulheres em idade fértil, e a última cita as meninas adolescentes, podendo incluir menores de 18 anos.
O planejamento reprodutivo no SUS precisa considerar o disposto no Art. 4º da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, segundo o qual o planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.
O conceito de saúde reprodutiva implica que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo (Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, 1994).
Considerando ainda o segmento populacional da portaria (em situação de rua; com HIV/AIDS; privadas de liberdade e trabalhadoras do sexo) que vivem historicamente na invisibilidade social, discriminadas e estigmatizadas podendo, essa medida reforçar ainda mais os preconceitos. Destaco aqui um aumento expressivo (140%) da população em situação de rua ao longo do período de setembro de 2012 a março de 2020, provavelmente pelo agravamento da situação econômica e social no país, que está levando muitas famílias a morarem na rua ̶ lembrando que o perfil dessa população, na sua grande maioria, é de pessoas negras. As principais bandeiras de luta dessas populações giram em torno do reconhecimento dos direitos humanos e trabalhistas, além do direito à saúde (IPEA, 2020).
Diante disso, houve uma grande mobilização dos movimentos sociais, que se manifestaram contra a implementação da Portaria nº 13 SCTIE/MS da forma como está. Está tramitando na Câmara dos Deputados o PDL nº 176/2021, que pede para sustar a referida portaria, e a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher promoveu audiência pública para debater a mesma portaria com os diversos segmentos de usuárias do SUS.
Nessa mesma linha, o Conselho Nacional de Saúde se posicionou contra a portaria através da Recomendação nº 009, de 04 de maio de 2021. A recomendação foi dirigida ao Ministério da Saúde, recomendando a revogação da portaria; ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS); e ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e à Câmara dos deputados, recomendando a aprovação do PDL 176/2021, que pede para sustar a portaria em questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As condições em que as populações nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem, têm grande influência na saúde dos indivíduos. Compreender esses fatores ajuda a encontrar estratégias de intervenção adequadas no sentido de minimizar seu efeito nocivo na saúde. Nessa construção, muitos desafios se apresentam para aprimorar a qualidade e seus processos de prioridade para o SUS e para as/os usuárias/os.
Nesse sentido, a portaria SCTIE/MS Nº 13 demonstra desrespeito aos princípios do SUS de universalidade e integralidade, bem como aos diferentes grupos de mulheres ao colocá-las, ainda mais, em situação de preconceitos e discriminação.
A portaria direciona uma política seletivamente a grupos vulneráveis de mulheres, sem a participação delas e nem do controle social nessa construção. Dessa forma, entende-se essa política como discriminatória, impositiva e higienista, ao invés de uma política de cuidados e de direito à saúde.
A participação popular e o controle social, são instrumentos fundamentais para a formulação, execução, avaliação e eventuais redirecionamentos das políticas públicas de saúde.
A atenção em planejamento familiar implica não só a oferta de métodos e técnicas para a concepção e a anticoncepção, mas também a oferta de informações e acompanhamento, num contexto de escolha livre e informada.
Ainda que em tempos de fragilidade da democracia no país, é necessário avançar nessa discussão e estabelecer rumos que resultem na prática a promoção da saúde universal, integral, equânime, gratuita e o bem estar individual e coletivo.
Em tempos de crise sanitária e retrocessos nas políticas sociais é sempre bom lembrar a importância de continuar lutando pela revogação da EC95/96, esse investimento salva vidas.
Este artigo faz parte do livro “Ciência, Tecnologia, Vigilância em Saúde e Assistência Farmacêutica, políticas públicas oriundas do controle social, garantidoras de democracia, soberania nacional e acesso à saúde”.
Baixe a cópia gratuita do livro em https://editora.redeunida.org.br/wp-content/uploads/2022/01/Livro-Ciencia-Tecnologia-Vigilancia-em-Saude-e-Assistencia-Farmaceutica-politicas-publicas-oriundas-do-controle-social-garantidoras-de-democracia-soberania-nacional-e-acesso-a-saude.pdf
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