Tenho 71 anos. Há cerca de um mês, recebi o diagnóstico de fibromialgia, que já considerava óbvio, e artrite reumatoide, que também já esperava. Sou jornalista e gosto de pesquisa. Aprendi a selecionar fontes, evitando canoas furadas. E meu interesse pela área da saúde vem de longe. Mas não apenas pela saúde. Cheguei a montar um arquivo de matérias de jornais e revistas (antes da Internet) sobre um mundo de temas.
Aos 40, a persistente e forte dor na coluna me levou a um ortopedista. O laudo da chapa de raios X dizia normal, porém o doutor Adolpho Libman garantiu que um pontinho claro no escuro da fotografia indicava um pinçamento numa ou duas das C qualquer coisa. Após muita fisioterapia, incluindo massagens e dramáticas situações de enfrentamento do trânsito no centro do Rio, ombros e pescoço extremamente inchados (edemaciados, dizem os profissionais do ramo), o doutor Adolpho me recomendou dois medicamentos preparados numa farmácia de manipulação do Largo do Machado. Santos remédios. Melhorei pra burro. E o quadro, antes, era desolador. Numa das consultas, ele solicitou que eu girasse a cabeça. Em vez de 180 graus, minha cabeça só girava uns 40. Foi então que ele falou nos tais pós milagrosos do Largo do Machado. Guardo pelo menos uma das receitas até hoje.
Dois anos mais tarde, mudei para Santa Catarina. Primeiro, Florianópolis. Depois, Joinville. As crises de coluna recomeçaram com toda força. Passava semanas e meses com dor e inchaço na cervical até aparecer a dor nos cotovelos. Dobrava os braços, doía. Esticava os braços, doía. E tome de médico, radiografias, anti-inflamatórios, analgésicos, o escambau. Não era nada. O que era? Uma manhã, senti que meus dedos pareciam colar no teclado do 286 enquanto tentava alterar matérias usando o Carta Certa, processador de texto do tempo da TI a carvão. Colar não era novidade. A novidade veio naquele dia em que meu braço esquerdo ameaçou paralisar e em seguida veio uma dor tão aguda e repentina que dei um grito na Redação, por sorte, vazia porque todos os meus colegas estavam fora da cidade a serviço. Parei imediatamente, fiz alongamento e voltei ao texto imaginando se tratar de dor passageira. Não. Tornou-se impossível continuar.
Almoçando em casa no mesmo dia, coincidentemente vi, por acaso, uma moça de Guarulhos, a Francisca, falando sobre LER (Lesões por Esforços Repetitivos) que estava dizimando milhares de trabalhadores mundo afora. Ela própria uma vítima, fundara a Associação de Prevenção e Combate à LER (Apcler). O alerta da Francisca me fez anotar o telefone da entidade e ficar desconfiado que estava com aquilo. Telefone em casa não tinha. Fui obrigado a pedir autorização da secretária da agência de comunicação empresarial onde eu atuava como editor de publicações de diversos clientes. Fiquei muito impressionado com o espírito de luta da Francisca, os desafios que enfrentava, a desconfiança dos chefes e dos próprios colegas quanto à autenticidade do seu sofrimento, os conhecimentos que adquirira sobre a síndrome. Estávamos em 1996, se me lembro bem.
Em seguida, entrei numa peregrinação que me levou aos consultórios nos quais me deparei com um quadro caótico de informações e contrainformações, confundindo-me e me levando a um impasse quanto a fazer ou não cirurgia nos dois punhos em razão de um laudo que apontava para síndrome do túnel de carpo bilateral. Tive de contar com o apoio de muita gente, inclusive dos meus ex-patrões em Joinville (SC), que foram solidários, compreensivos e extremamente generosos no trato de uma situação complexa, inclusive com possíveis reflexos em instâncias da Justiça do Trabalho. Minha vida tinha virado de cabeça para baixo, sem que eu e minha família vislumbrássemos uma saída. Porque parecia fácil fazer as cirurgias. O problema é que as cirurgias não garantiam a recuperação. E sabíamos disso porque ouvíramos depoimentos espontâneos de gente na rua que, após 2 anos de operado(a), tinha voltado a sentir dor. E mais forte. Sem exagero, houve até casos de tentativa de suicídio de jovens trabalhadores para quem a vida parecia ter acabado. O que se faz quando, de uma hora para outra, não se pode mais usar as mãos?
Após intermináveis discussões quanto ao que fazer, decidi tentar o mestrado em comunicação para, retornando ao Rio, me tornar professor universitário. Outro tiro no escuro. Deu água na minha particular batalha naval. Fiz o mestrado, sim, na ECO/UFRJ. Mas trabalhei pouco como professor. Não me adaptei e ainda por cima muitas faculdades tinham, acho que ainda têm, o péssimo hábito de atrasar pagamento, quando cumprem o compromisso. Então, minha mulher triplicou as jornadas de trabalho como professora, enquanto eu ia pro limbo, fazendo um biscate ou outro. Num dado momento, decidi que, se o INSS não reconhecia minhas dores e inchaços nos membros superiores e, já a essa altura, em parte dos inferiores, como doença, eu estaria apto para o trabalho também no serviço público. Fiz concurso e tenho cumprido minhas obrigações com dignidade e respeito pelo município que me recebeu. Breve, em alguns meses, estarei aposentado, embora precise continuar trabalhando, ainda que seja em casa, porque a grana vai encurtar.
Devo, por justiça, registrar a boa vontade, a compaixão (não piegas) e a competência de profissionais de saúde, especialmente da saúde pública. Ao longo desse longo percurso, fui muito bem acolhido pela médica Márcia Nied e pela enfermeira Terezinha (ambas de Joinville), pelo doutor Alberto José Araújo (Fundão-RJ) e pelo médico do trabalho Zezinho (Fiocruz-RJ). Mais recentemente, cito o doutor Nathan Kamliot, a psicanalista Magali, o psiquiatra Vandenberg Medeiros e a reumatologista Raquel Zandonade. Ele, do SUS em Maricá, direcionando a investigação clínica para o tratamento da dor crônica, e ela, igualmente do SUS Maricá, solicitando os primeiros exames cujos resultados me fizeram procurar, sem demora, a também reumatologista Yêdda Chagas, da Santa Casa do Rio. Em julho, tomei ciência do diagnóstico de fibromialgia e de artrite reumatoide (atividade elevada).
Agora, tenho oficialmente os seguintes problemas de saúde: artrite reumatoide, asma (ou bronquite, dependendo do médico), depressão, fibromialgia, glaucoma, 5 hérnias de disco, hipertensão arterial e refluxo gastroesofágico. Gostaram? Isso é que é currículo!
Quanto ao tratamento propriamente, ainda não foi possível começar porque os 16mm que o meu ppd acusou, indicam forte reação ao tal do bacilo de Koch (da tuberculose) com o qual fui contaminado, o que significa, pelo que entendi, uma agressão igualmente forte do agente da tísica, como chamavam essa doença quando eu era criança. Não estou tuberculoso, mas de alguma forma entrei em contato com o micróbio, e ele está no meu organismo, prontinho pra se tornar ativo e ferrar comigo ainda mais. Por isso, tive de iniciar tratamento preventivo (os médicos dizem profilático) contra a tuberculose, tratamento que dura 6 meses, mas felizmente a partir do quarto mês, em novembro, poderei, enfim, atacar a AR com os medicamentos apropriados.
Estou aliviado, se bem que a dor continua me torturando, ora em menor, ora em mais alto grau, à minha revelia e acho que também à revelia dos remédios para diminuir o inchaço e a intensidade dessa bruxa insidiosa. Nesse agosto que agora termina, melhorei, mas já nas duas últimas semanas do mês, a dor ganhou terreno de novo. Entretanto, talvez por conta de tanto tempo convivendo com essa devastadora de corpos e mentes, creio ter desenvolvido mecanismos de tolerância a ela que me permitem enfrentá-la ainda, apesar de tudo. Por exemplo: há três dias estou escrevendo esse texto. E olhe que cortei uns bons anos dessa história do meu casamento involuntário com essa senhora de muitos maus bofes. Pouco importa se a separação definitiva, o divórcio, virá ou não. O que quero é que ela pare de tentar atrapalhar a singular e ótima relação com a minha mulher, ela, sim, uma companheira apaixonante e extraordinária. Chô! Dor. Chô! AR.
Maricá, 2 de setembro de 2018.
Odemir Capistrano Silva
Descubra mais sobre Artrite Reumatoide
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.